Textos de imprensa publicados em A Tribuna

 

1. 10-07-1962, p. 17

2. 11-10-1962, p. 03

3. 14-10-1962, p. 09

4. 21-10-1962, p. 09

5. 09-11-1962, p. 02

6. 11-11-1962, p. 09

7. 18-11-1962, p. 13

8. 20-11-1962, p. 02

9. 25-11-1962, p. 11

10. 13-12-1962, p. 02

11. 24-12-1962, p. 02

12. 27-12-1962, p. 02

13. 30-12-1962, p. 11

14. 06-01-1963, p.13

15. 08-01-1963, p. 02

16. 13-01-1963, p. 13

17. 17-01-1963, p. 02

18. 20-01-1963, p. 09

19. 22-01-1963, p. 02

20. 01-02-1963, p. 02

21. 09-02-1963, p. 02

22. 11-02-1963, p. 02

23. 15-02-1963, p. 02

24. 05-04-1963, p. 02

25. 21-04-1963, p. 02

26. 21-05-1963, p. 01

27. 28-05-1963, p. 02

28. 02-06-1963, p. 02

29. 27-07-1963, p. 02

30. 20-09-1963, p. 02

31. 21-09-1963, p. 02

32. 29-09-1963, p. 02

33. 07-10-1963, p. 02

34. 29-10-1963, p. 02

35. 05-11-1963, p. 02

36. 09-11-1963, p. 02

37. 15-11-1963, p. 02

38. 02-02-1964, p. 13

39. 21-02-1964, p. 02

 

 

1. 10 de julho de 1962, p. 17  

 

 Contacto

 

Na verdade, somos escravos dos hábitos. Desde pequenos aprendemos a falar e a pensar em função de modelos determinados. Uma sucessão de costumes comanda os nossos atos mais insignificantes. São esses atos que nos distinguem uns dos outros, povos desta ou daquela região. A esses hábitos convencionou-se chamar folclore. E não há dúvida que são distintivos de cultura.

Desde tempos imemoriais que o homem se impôs o adorno. As peças de adorno teriam vários fins: distinguir, embelezar, respeitar e exaltar. Tanto para a guerra como para o amor e tanto para as reuniões festivas como para as cerimónias fúnebres o homem teve desde sempre o cuidado de se ornamentar conforme a natureza do acontecimento. E assim se radicaram os hábitos sociais.

Nenhuma sociedade, por mais atrasada em relação aos padrões de civilização dominante, prescinde dos costumes. E é sabido como o vestuário tem sempre um significado. O pastor não se veste como o sacerdote e o guerreiro tem também os seus trajes próprios. Na escolha e diversidade do traje pôde o homem exercitar o seu substrato estético e a sua superioridade biológica perante os vários fenómenos da sua existência, apetrechando-se contra o frio, o calor, a neve ou o granizo e ainda equipando-se contra a agressão ou imunizando-se dos efeitos dos encantamentos e espíritos malfazejos (amuletos, crucifixos, medalhas, figas, etc.).

Posto isto, é um contrassenso a rebeldia de alguns indivíduos face aos distintivos legalizados pelos hábitos sociais nos lugares públicos.

E porque um lugar público se diferença de uma toca por constituir um ponto de reunião social, não faz sentido a desarmonia estética que alguns sujeitos impõem ao sítio apresentando-se trajados de forma a contrariar a tradição da sociedade a que pertencem, caso dos brancos, ou em que se incorporaram, caso dos negros e mestiços.

Tal facto origina um despropósito quanto aos costumes estabelecidos que transcende a mera indisciplina e passa a considerar-se falta de educação, de que não resulta inovação ou renovação para melhor mas simples relaxamento e menos consideração pela comunidade social ali largamente representada para tomar parte em ato de interesse ou convívio coletivos.

E certamente que todos conhecem, mesmo que as não cumpram, as principais regras do ornamento em função da estética, do conforto e da tradição patriarcal.

O homem que aparecesse na praia de fato preto, laço e sapatos de verniz imediatamente seria alvo da mesma curiosidade crítica e risível do que surgisse num baile de sandálias, camisa de meia manga e chapéu de palha. Num funeral ninguém de bom senso se apresenta de boné na cabeça, camisa de tecido estampado e calções.

As convenções sociais existem em qualquer escalão da civilização.

É por isso que não é lógico nem defensável permitir-se que em teatros ou salas onde decorram cerimónias de importância social ou ainda em casas públicas tenham ingresso pessoas cujo comportamento e traje sejam tidos como irreverência injustificável aos pressupostos de respeito pelos lugares, pessoas e ambientes.

Portanto, e por consideração às convenções que definem tipos ou estilos de cultura, cumpra-se nos aglomerados populacionais não só o que os hábitos mandam voluntariamente, mas o que a lei obriga a não infringir. E que os proprietários das casas públicas deixem de receosamente consentir esses abusos e os frequentadores entendam, nem que seja por meio de severas sanções, que não devem caprichosamente transgredir os preceitos.

Teatro, campo, estádios, praia ou restaurantes não têm o mesmo valor social perante a comunidade e o mesmo escalão na órbita cultural de um civilizado e tanto assim é que cada um desses lugares tem a sua indumentária apropriada, distinta e variegada, na mesma medida em que as próprias funções também são diferentes.

Não deve repugnar, portanto, o regresso ao tempo em que a um adulto se não permitia a liberdade de ir a uma sessão noturna de cinema de calção, fralda de fora e sandálias, tal como se vai à praia em pachorrento fim de semana ou descontraidamente se faz campismo de domingo nos arredores da cidade. É que nem os trópicos explicam o desregramento.  

 

JOSÉ CRAVEIRINHA

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2. 11 de outubro de 1962, p. 03

 

AGOSTINHO CARAMELO [1] redator da Gargalhada

 O mais fantástico “bluff” literário da época

Caso genial da literatura portuguesa

Ou o maior logro da crítica?

 

“Bluff”, génio ou logro? Três hipóteses. Qual delas a verdadeira?

Agostinho Caramelo, escritor, é um caso a tratar detidamente, já que algumas opiniões de pessoas com responsabilidades (Fernando Namora, por exemplo) lhe concederam recentemente honras que dificilmente se atribuem a autores que não tenham valor autêntico.

Para quem conheça pessoalmente Agostinho Caramelo é problema identificá-lo com qualquer espécie de obra literária que mereça que não seja o de um verdadeiro caso de parto humorístico, talvez relacionando sempre o autor de Fogo com as antigas funções de redator de uma revista para fazer rir chamada Gargalhada.

Mas também se pode aceitar a alternativa de desdobramento de personalidade, em que a aparência habitual da pessoa fosse uma coisa e a sua envergadura intelectual outra. Porém… e o romance? Teria Agostinho Caramelo conseguido revestir de uma hábil capa de falsa incultura para estudo psicológico dos outros ou é ele mesmo uma personagem enigmática a revolucionar a literatura portuguesa?

Compete aos críticos e a todos os que respeitam a literatura entabular no mais curto prazo um debate acerca deste fenómeno das letras, que, sendo apresentado com um fulgor de astro tão ofuscante, exige por isso mesmo um firmamento próprio, seja qual for o seu tamanho.

Ele, Agostinho Caramelo, e os entusiásticos críticos que o ejetaram para céus literários quase inacessíveis precisam de ser devidamente consagrados ou, caso tal se justifique, totalmente desmascarados. Incensados ou ridicularizados. Aplaudidos ou postos nas ruas da amargura.

Não se pode é contemporizar. Seja com o sr. Caramelo, como o sr. Montezuma de Carvalho [2], o sr. Fernando Namora ou com a ignorância de todos os senhores moçambicanos que não acreditam na genialidade do autor de Fogo.

E isto tudo antes que apareça alguém a considerar um disco de poemas ditos pelo mesmo Agostinho Caramelo a obra-prima revolucionária da técnica de declamação.

 

 

JOSÉ CRAVEIRINHA

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3. 14 de outubro de 1962, p. 09

 

Contacto

 

Esteve recentemente em Moçambique uma bem-intencionada jornalista brasileira. Antes de se ir embora disse o seguinte: “No entanto aqui escreve-se bem e acho, portanto, estranho que esses valores não possam expandir-se e criticar.”

E logo houve quem embandeirasse em arco e enchesse a peitaça, com as beiças babando-se de gratidão.

Eu acho é que a senhora poderá ter sido muito simpática mas feriu Moçambique. E se há pobres diabos que tenham ficado de olhos liquefeitos por uma apreciação na generalidade sobre a moçambicana capacidade de escrever, confesso que não vejo razão senão para o contrário.

Depois de 450 anos de presença de uma língua escrita em Moçambique vir uma senhora dizer-nos nas bochechas que os "jornalistas" de Moçambique escrevem bem, é admitir que isso de jornalismo, que é uma atividade intelectual em toda a parte, havendo-o, pudesse em Moçambique ser em regra exercido por analfabetos.

 Não se deve, pois, agradecer à simpática senhora jornalista visitante a concessão tão desassombrada que fez aos seus “colegas” moçambicanos ou de Moçambique quanto a saberem redigir a sua língua oficial. Ora, um jornal faz-se com as ferramentas do espírito: as ideias. Pode um homem não libertar as ideias no que escreve por estar condicionado a vários fatores imperiosamente fortes, mas não se permite é supor que haja uma Imprensa e que ela se realize com jornais concebidos por gente necessariamente evoluída mas com pública aversão à gramática da língua em que expõe os seus pensamentos à massa heterogénea dos leitores.

E se algum “jornalista” de Moçambique, ou coisa que o valha, se sente grato pela apreciação da senhora a que me reporto, haveria mais motivos para todos se sentirem inferiorizados por uma insinuação de que Moçambique, que vem a ser evangelizado há mais de 400 anos, pudesse ter órgãos de informação em língua portuguesa escritos em mau português. Isto, aceitando que uma Imprensa é sempre um fator representativo de uma evolução e não o aspeto negativo do estádio cultural de um povo.

Se a Sr.ª D. Maria Helena Lima e quem quer que tenha inchado de gozo narcísico pelo enigmático elogio admitem uma Imprensa em Moçambique é porque para eles existe jornalismo. Mas conferir-lhe a qualidade e ao mesmo tempo negar-lhe o exercício é que eu, pobre escrevinhador, não consigo, por mais que tente conciliar em bom, mau ou péssimo português.

Imprensa periódica é produto que não existe em quilos, gramas ou centigramas ou ao gosto do freguês. Ou há ou não há!

 

JOSÉ CRAVEIRINHA  

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4. 21 de outubro de 1962, p. 09

 

Contacto

 

Certamente que a ideia de fazer em Moçambique os livros de leitura para as escolas moçambicanas é boa solução. A melhor, até.

Mas no que diz respeito à 4.ª classe, o livro que foi posto à venda tem os pormenores negativos que passamos a citar:

Referimo-nos ao texto. Não compreendo o critério que presidiu à preferência por determinados autores com evidente esquecimento de outros. E nalguns casos a seleção foi tão inadvertida e tão pouco previdente que incluiu num livro de leituras para alunos de todas as origens étnicas: negros, mestiços, indianos, etc., excertos de autor consagrado na opinião pública validamente esclarecida como defensor de ideias contrárias ao respeito por aquilo que hoje tão frequentemente se ouve chamar de “multirracial” ou aquilo que o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre entusiasticamente exaltou como “lusotropicalismo”.

Levar esses alunos ao estudo da língua Portuguesa pelo contacto com escritos de autores como o Sr. Rodrigues Júnior[3], parece-nos conter uma injustiça flagrante para com jornalistas já consagrados na toponímia da cidade e na tradição histórica do jornalismo moçambicano, como são os casos dos irmãos João e José Albasini, Estácio Dias e Rui de Noronha.

Textos destes jornalistas seriam a homenagem póstuma em perfeita harmonia com a ideia da Câmara Municipal ao escolher os seus nomes para ruas e um largo nesta cidade e um meio de os alunos ficarem a saber o que representam aqueles nomes tão familiares aos seus olhos e ouvidos.

Na escolha dos poetas quer-nos parecer que também se foi pouco moçambicano. Vemos Olavo Bilac, brasileiro, vemos Simões Müller em profusão e não encontramos nas páginas do livro de leituras de Moçambique um verso apenas de Rui de Noronha e Reinaldo Ferreira, poetas cujas obras estão para sempre identificadas com a literatura de Moçambique e cujo mérito se não discute, porque se Olavo Bilac é grande no Brasil, Rui de Noronha e Reinaldo Ferreira são maiores em Moçambique.

Entre os heróis da Ocupação Portuguesa de Moçambique foi esquecido o nome de João Massablana que preferiu servir a bandeira das quinas do que ser fiel aos régulos inimigos da soberania portuguesa. Dele se não fala mas há a Rua João Massablana na toponímia da capital.

Neste livro não se fala de missionários de Moçambique que ficarão consagrados na memória de muitos moçambicanos. O Padre Martins, por exemplo. Ele merecia um cantinho que fosse neste livro. Fez muito pela instrução de moçambicanos pobres ali na Escola Paroquial, num tempo em que se trabalhava sem trombetas de publicidade nem retumbantes “slogans”.

Não se fala também no moçambicano Pedro Baessa, não sei porquê. E imperdoável foi o esquecimento da grande e romanesca figura do primeiro João Albasini, generoso doador de terras ao Governo Português e cuja ação foi tão importante no estabelecimento da soberania em Moçambique[,] talvez o único branco português que foi régulo de uma tribo africana.

Não vemos no Livro de Leituras da 4.ª classe textos de António Enes e José Cabral ou citar Roque de Aguiar, Manuel António de Sousa, etc.

De uns e de outros seria muito proveitosa a divulgação da crónica, por variadas razões, já que por outras o livro inclui textos nitidamente para criar simpático ambiente.

Por causa deste livro já tive que explicar aos meus filhos quem era o Sr. Rodrigues Júnior em relação aos valores humanos afro-luso-moçambicanos e mostrar-lhes algumas opiniões convictas defendidas por aquele senhor em livros e artigos. Era meu dever fazê-lo, tanto como era dever de quem selecionou os textos evitar-me esse esclarecimento.

E excluindo uma ou outra coisa, o livro, afinal, é mais moçambicano por ter sido composto e impresso em Moçambique do que pelo seu conteúdo.

 

JOSÉ CRAVEIRINHA

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5. 09 de novembro de 1962, p. 02

 

RESPOSTA A UMA CRÍTICA LITERÁRIA

 

O que o fascismo representou e ainda representa na história da civilização europeia e as repercussões nefastas da sua ação supressiva das liberdades fundamentais do homem, ninguém o ignora. Foi uma experiência por demais amarga para quantos ainda podiam acreditar na democracia e viram surgir de mãos dadas o nazismo e fascismo para horrorizarem o Mundo com os seus crimes e a ferocidade dos seus fanáticos adeptos.

Contudo, a lição parece não ter sido aproveitada por todos, já que alguns ainda sentem a exacerbação suástica e a necessidade de permanecerem fiéis ao fáscio. E deprime que pessoas com responsabilidades intelectuais sintam seu dever fazer a apologia dessa figura-símbolo de uma ideologia ditatorial. Muito pouco se pode entender a justificação de crimes à escala universal cometidos por um Mussolini ou por um Hitler, conquanto os biógrafos possam no estudo psicológico de qualquer dessas sinistras personagens explicar os seus atos como resultados de um estado de morbidez.

Daqui o sentimento de profunda admiração ao tomarmos conhecimento de uns considerandos à volta da memória de Mussolini com base numa obra biográfica da autoria do escritor Georges-Roux. Nesses considerandos o sr. dr. António da Silva Gonçalves, encarregado da secção de crítica literária do jornal Diário e um dos mais destacados colaboradores efetivos daquele periódico, não só analisa a obra citada como também lhe acrescenta opiniões pessoais sobre o famigerado ditador fascista.

O sr. dr. António da Silva Gonçalves, autor da crítica apologética em questão e encarregado da página literária do jornal Diário de Lourenço Marques, não só começa por nos fazer saber que:  “Um homem que militou sempre contra Mussolini leu a biografia que dele escreveu Georges-Roux e que a editorial «Aster» publicou, e disse-me que jamais tinha feito direto juízo sobre o famigerado ditador italiano que encheu a Europa juntamente com os ditadores russo e alemão, em luta de ideias e no campo de batalha. Leu-a quase de um jato, tal o interesse que lhe despertou. Ao fim condoeu-se do homem e do político.” O sr. dr. António da Silva Gonçalves não nos elucida com quê e como é que Mussolini encheu a Europa. E como o não fez certamente por esquecimento[,] correremos em seu auxílio dizendo: com sangue, aniquilamento moral e físico, prisões, torturas e supressão das liberdades fundamentais.

Com espanto encontramos nas palavras do sr. dr. António da Silva Gonçalves a ideia de que Mussolini só mereceu a condenação de comunistas, ele, Mussolini que ainda é um símbolo de terror político. Nessas supressões e torturas não se tratava apenas de luta anticomunista. Se assim fosse[,] o chamado Mundo Livre teria que ser condenado por ter lutado e derrotado o Duce e o fascismo não seria o monstro abjeto que a História da Europa regista como uma das suas maiores calamidades.

O sr. dr. António da Silva Gonçalves não se contentou em fazer crítica literária, se se pode considerar crítica exaltar o chefe do fascismo, porque se não coíbe de afirmar: “Impossível negar que a Itália conheceu com o fascismo momentos altos de vida interna e externa; impossível negar que Mussolini livrou a Itália das mãos do comunismo que esteve com o caminho aberto para a posse da Nação”.

Estivesse o sr. dr. António da Silva Gonçalves mais familiarizado com o nascimento, vida e expansão do fascismo e do seu irmão nazismo, saberia que a natureza de tais regimes ditatoriais precisa sempre de pretextos para alimentar a própria voracidade: antissemitismo, anticomunismo, espaço vital e prestígio nacional.

Que mais nos diz o sr. dr. António da Silva Gonçalves sobre o grande Mussolini? Compungidamente, lamenta: “mas também impossível negar que Mussolini foi infeliz ao jogar a cartada que o perdeu, que o atirou para os braços da suma desgraça”.

O sr. dr. António da Silva Gonçalves não tem, assim, a mínima hesitação ao lamentar que o ditador fascista tenha perdido uma certa jogada, esquecendo-se que se assim não tivesse sido tal representaria a derrota dos aliados. Como facilmente se depreende, o sr. dr. António da Silva Gonçalves não tinha e não tem dúvidas na opção. Preferia a vitória da cartada de Benito Mussolini e, portanto, de quanto tal personagem representava para o Mundo.

E novamente é o sr. dr. António da Silva Gonçalves que nos assevera: “a sua obra foi considerável”.

Depois confere à figura de Mussolini um aspeto de “dramatização” e de “angústia”, coisas com que tem de se estar de acordo. Ao classificar o “Duce” como um caso de angústia, o sr. dr. António da Silva Gonçalves perfilha a opinião e sugere aos outros que reabilitem publicamente a memória do ditador italiano, de um Hitler, um Trujillo e um Estaline, todos eles com uma bela e considerável obra.

Lamentar o homem e o político simultaneamente, parece-nos ousadia que transcende a função de crítico literário de um jornal de cariz estruturalmente católico. E quando à angústia do pobre “Duce” qualquer biógrafo que deseje fazer psicanálise considerará como casos agudos de angústia um Landru, um Nero, um Himmler, um Rasputine, um Al Capone ou um Eichman. Todos esses casos são típicos de temperamentos mórbidos. Todo o déspota é um atormentado. Mas se perante a ciência os seus casos têm explicação, perante a consciência da Humanidade não passam de atos de criminosos em escala universal. Aliás, os médicos não são juízes, são cientistas. E um crítico literário não é uma coisa nem outra.

A possibilidade de se explicar a ferocidade de um tigre, não presume que se transforme o tigre em pomba.

Seja como for, tenha o sr. Georges-Roux achado Mussolini um pobre diabo digno de pena e compreensivas preces de arrependimento pelo mal que se lhe fez, Mussolini foi Mussolini e o fascismo será sempre fascismo.

 

J.C.

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6. 11 de novembro de 1962, p. 09

 

CONTACTO

 

Bertina:

Escrevo-te a propósito do concurso para o painel do Banco Nacional Ultramarino. Não é para te lamentar e muito menos para falar sobre o critério de escolha. Nada tenho a dizer quanto a isso. O Garizo é um grande artista. Sabe o que faz. O segundo lugar foi atribuído ao João Paulo. Acho que também está certo.

Mas o que eu tenho para te comunicar é o seguinte: Estou contente. E estou contente porque vi o teu trabalho. Sei de que constava o painel que pretendias pintar para figurar no edifício do Banco Nacional Ultramarino. Os meus parabéns, Bertina. E mantém sempre a mesma posição quanto à tua arte. Não cedas, não pactues, não transijas. Marca a tua presença artística com temas como esse que concebeste para o concurso. Um tema que era um pouco da nossa terra, dos costumes da nossa terra, das gentes da nossa terra. Isso não é para qualquer, Bertina.

Seria uma traição se aparecesses a concorrer com uns traços de ousado abstracionismo ou umas caprichosas figuras semicubistas ou com pseudo-surrealismos. Sei que são escolas. Estilos. Mas em ti esses estilos pareceriam cabotinices de magaíza que descobre a magia de um gramofone. Cheiraria a aldrabice. A palhaçada.

O facto de não teres conseguido qualquer prémio não quer dizer que o teu trabalho esteja errado. Simplesmente o tema e o processo da tua pintura não foram os que melhor impressionaram o júri. Mais nada. Mas o teu trabalho, disso podes estar tu plenamente certa, Bertina, era o único vinculado a Moçambique. Fazias etnografia no teu painel. Quem quer que fosse ao Banco haveria de ter contacto com um motivo de universal interesse sociológico. A história do “lobolo” tal como a tinhas visto e realizado era um tema local, enraizadamente moçambicano. Ainda não encontrei, Bertina, nos museus ou em qualquer galeria onde se expusessem quadros[,] nada que representasse o aspeto real de um costume tradicional.

É por essa razão que te escrevo e felicito. Foste o único artista de Moçambique inteiramente moçambicano na obra que apresentaste. É muito importante. Muito. Eu sei que a arte não tem fronteiras. Mas tem características. Tem individualismo.

Contar num painel todo o ritual a que obedece o “lobolo” é tema aliciante, original e instrutivo. Estamos em África, Bertina. Não é uma condição para fazer arte válida mas tem grande importância ser-se fiel a uma tradição telúrica e termos os sentimentos não desligados do lugar onde temos os pés.

Continua no mesmo caminho, Bertina. Continua a pintar assim. Não te julgues frustrada. Tu, o Malangatana, o Abdias e o Sérgio são os poetas de que Moçambique precisa na pintura. Não traiam Moçambique.

Mais uma vez, Bertina, os meus parabéns e os meus aplausos pelo tema que tu escolheste para o concurso que o Banco Nacional Ultramarino abriu para um painel no seu edifício em Moçambique. Um tema que simbolizando o valor moral do dinheiro estava plenamente identificado com tudo quanto o Banco nesse capítulo representa na estabilidade ou instabilidade da família e, portanto, do povo.

 

JOSÉ CRAVEIRINHA

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7. 18 de novembro de 1962, p. 13

 

CONTACTO

 

Bertina:

Vês? Cá estamos nós na temida encruzilhada. Escolher é o nosso problema. A exortação que nos afirme é uma afronta. Mesmo os que são nossos amigos e nos admiram, fazem-no com a reserva de que caibamos na medida do seu universo.

Estamos entregues a nós mesmos na nossa caminhada para a sincronização do nosso eu com o mundo circundante e prevalecente. Ainda há quem não perceba que para nós criar não é sofisticar mas ser? A partir desse reconhecimento é que vem a harmonia geral. Um amendoim tem várias realidades: a nossa é uma delas. A significação da nossa linguagem poética é uma espécie de regresso ao[s] tabus e admiti-lo sem ser por nós equivaleria a uma cumplicidade na nossa reimersão na conquista de padrões que nos integrem num plano igual no esplendor do mundo plástico.

A realidade social não é uma parede subjetiva para nós. Pertence a dada época. Precisamos de ser compreendidos no tempo-prazo, preenchendo o vazio histórico ao nosso redor e a angústia dilacerante da solidão. A poesia clássica e comummente aceite não tem o nosso conceito de poesia. A obra de arte, que é uma afirmação, em nós supõe uma graça social de reafirmação.

Bertina: Mesmo que residamos, tu na Polana, o Malangatana para lá de Mavalane e eu na Munhuana[,] um elo indestrutível liga-nos. O elo é como somos porque assim nascemos. Não podemos usufruir o luxo da inautenticidade intelectual sem largarmos bocados de nós mesmos pelo caminho. Sem cedermos partes vitais. Há uma sobrecarga psicológica em nós. Um permanente turbilhão de sensações.

Rejeitar uma cultura regionalista é negarmo-nos. Os que não sentem a mesma motivação é porque são Gloriosos, Imanentes e transferem para o plano da supremacia técnica também o seu sentido do Belo. São Perfeitos. Cultura para esses está para além do lugar. Porque se transcontinentalizaram e já não vivem a intensidade do lar-terra como uma verdade cósmica. Libertaram-se. Emigraram. Não experimentaram a nostalgia do clã senão por um esforço da inteligência e não do emocional. Não vivem o circunstancial.

Bertina: Para nós ainda não há esse cómodo meio de fuga. Um reencontro connosco é uma exegese, um primado de consciencialização. Precisamos de cultuar a reminiscência ancestral como forma de reabilitação integral. Enfrentamos o problema da Arte como fenómeno interpretativo do histórico. A Arte é para nós um estado de metassíncrese ovular. Não um jogo onanístico de volumes, ritmos lineares a preencher claros ou requintes metafísicos. Precisamos de representar coisas. Os valores totémicos não os concebemos por meio de visualizações pensadas. Conferimos a coisas reais a Transcendência e a Transfiguração. Tornamos os objetos coisas sobrenaturais. O ocultismo é um jogo inacabado nos valores do nosso planejamento estético. Ainda não conquistámos a cidade senão por mero acidente visual. Passamos nela. Não estamos. Realizamo-nos através de raízes mergulhadas na terra.

É absurdo admitir que vivendo todos a mesma época reagimos da mesma maneira. O substrato interior tem fases. Nuns ultrapassou, noutros estagnou e noutros tende a uma reimpenetração. O teu caso, o meu, o do Malangatana é o da reimpenetração de que saiamos redimidos.

Não podemos viver simultaneamente com a mesma intensidade a História do Alto Maé e da Polana, sendo Polana.

O circunstancial da arte faraónica ficou até os nossos dias. Era folclórica. A arte grega era circunstancial e permaneceu. A arte azteca era circunstancial e subsiste. Era folclore.  A arte dos maias era circunstancial e sobreviveu. Também era folclore.

Bertina: O folclore não limita quando É. Nem sequer folclore moçambicano pode ser última moda para o próprio natural porque folclore e povo univalem-se. E só uma cultura estranha pode fazer modismo em relação a folclore. Se o corridinho estiver na moda e cantares o corridinho, estás a fazer moda, não estás a fazer folclore. Mas há uma coisa racional que podes fazer: respeitar o corridinho ouvindo-o e aplaudindo-o até se fores ao seu lugar de origem.

Mas, Bertina, em arte não estabeleças hierarquias. Ela é ou não é.

Não fazemos folclore. Somos folclore. E o folclore não é fenómeno petrificado mas dinâmico. Procuramos ardentemente o nosso próprio espírito como já ninguém mais o pode procurar.

Bertina:

Gwendolyn Brooks disse: “Todo o poeta negro tem algo a dizer”. Simplesmente porque é um negro não pode deixar de ter importantes coisas a dizer. Seu próprio corpo é, nesse sentido, eloquente. Seu andar tranquilo pela rua é um discurso ao povo. É um libelo, um argumento, uma escola.

E sabes o que confessa Jean-Paul Sartre, Bertina? Que “É quase impossível aos nossos poetas renovar contacto com as tradições populares: dez séculos de poesia erudita separam-nos e, além disso, a inspiração popular estancou: no máximo poderíamos imitar por fora a sua simplicidade”.

Bertina: Não temos a felicidade de desejar só ser artistas. Nós desejamos a reabilitação da nossa personalidade plena através da nossa arte.

Para nós Arte é também a reivindicação da nossa identidade no mundo dos homens. A linguagem em que pedimos que nos aceitem, nos amem e nos respeitem. E se estamos errados a culpa não é tua nem minha.

Acabou-se, Bertina. É tudo.

 

JOSÉ CRAVEIRINHA

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8. 20 de novembro de 1962, p. 02

 

DUAS ATITUDES  

 

Porque certos problemas não devem ser tabu, antes devem constituir assunto aberto e a todos acessível, até porque se trata de casos não de comportamento geral, aqui ponho hoje duas atitudes. Qualquer delas coerente consigo mesma e ambas virtualmente erradas e mais, indesejáveis, embora simples casos individuais.

Primeira atitude: Um certo senhor jornalista da Beira, publicamente em jornal, pretendeu há tempos que podia ser racista (se o quisesse) em relação a um descendente de mãe negra, mas ao mesmo tempo negava que tivesse o preconceito racial.

Segunda atitude: Um patrício meu afirmava um dia que tinha “orgulho em ser negro”.

Num como no outro caso o complexo de superioridade racial é evidente. No primeiro caso, por consciente exaltação do mito nazi de arianismo puro em função de um preconceito, e no segundo caso como resultado de reflexos instintivos mais do que de ordem provocativa.

O tal jornalista, ao declinar magnanimamente o direito que julgava ter de poder ser racista em relação a um homem de cor não se apercebia de que reivindicava em público uma subjetiva superioridade racial. Nisso, perfeita e insensatamente, diga-se de passagem, se denunciava o sentimento de que ele próprio se imbuía de possuir características peculiares a um grupo humano como nenhum outro biologicamente mais perfeito. Não cabe neste comentário pôr o problema individual do referido jornalista em termos de solução ao nível da ciência bioantropológica. Isso levaria a conclusões interessantes, sem dúvida, quanto à pureza dos genes de que o mesmo se julgava perfeito tipo e a legalidade do seu uso incondicional por espécime cujos caracteres somáticos pertencem a indivíduos de duvidoso e amplamente precário padrão de eugenia racial.

Contudo, não há a menor dúvida de que o citado jornalista prescindia temporariamente do privilégio de poder ser racista, conquanto não renegasse tal prerrogativa, considerando-se até merecedor dela numa conquanto taxativa declaração de soberba.

Assim, temos dois casos distintos de narcisismo racial com a mesma extensão negativa. E porque já falámos de um, diremos agora do meu conterrâneo que o negro que se orgulhe de ser negro é porque vê investida exclusivamente a sua raça [de] uma dada excelência hereditária em oposição às demais raças ou cores de pele. Só dessa forma se explica uma reação de orgulho por ser de uma determinada raça ou cor e não de outra, por se ter a pele mais escura ou mais clara, os cabelos mais crespos ou mais lisos.

Qual dos dois aspetos da questão é menos aceitável? O caso do jornalista beirense tem a responsabilidade do ato escolhido e da posição que presumiu a melhor. O do negro que faz saber do seu orgulho em ser negro ou do mestiço em ser mestiço constitui vulgaríssimo fenómeno em qualquer indivíduo que nos seus recalcamentos deseja contudo afirmar uma personalidade, sem aptidão (cultura) para iludir as armadilhas dos preconceitos em que caem todos os povos, desde os mais civilizados aos menos evoluídos. Desde o alemão ao hindu e desde o cigano ao chope o orgulho na própria condição tradicional, regional ou tribal é um facto da universal verdade social.

Mas do que não há dúvida é que nos dois casos que nos servem de exemplo, o do jornalista assume maior gravidade por uma questão de reconhecimento do desnível de instrução existente entre ambos e as atenuantes que toda a incultura justifica, assim como a diferença das responsabilidades entre aquele que atua em nome de conceitos formados à base de ideologias e o que se manifesta por meros impulsos de imaturidade intelectual torna plenamente aceitável.

No entanto, casos dessa natureza são sempre manifestações de racismo, porquanto só pessoas atacadas da enfermidade do preconceito de superioridade racial, como todos os fascistas e nazis, podem julgar-se detentoras dos requisitos tidos como necessários para desprezar outros seres humanos ou então simplesmente proclamarem um sentimento de orgulho na sua própria condição biológica; sejam eles brancos, negros, mestiços claros ou escuros, indianos, chineses, etc.

E quando alguém afirma a outrem que pode ser racista mas não o quer e ainda quando outro diz orgulhar-se da sua raça, por tudo quanto já dissemos não pode sobrar a mínima hesitação em denunciar tais declarações como espontâneas e condenáveis confissões de racismo.

 

 

J, CRAVEIRINHA

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9. 25 de novembro de 1962, p. 11

 

CONTACTO [4] 

 

A frequência com que muitas pessoas inconscientemente incorrem em faltas de amplo alcance psicológico leva-nos a tentar ver o problema por um ângulo que sendo de compreensão ao mesmo tempo esclareça a posição de ofendidos e ofensores.

Porque será que muitos indivíduos se sentem chocados até à indignação quando naturais nativos em lugares públicos proferem inocentemente palavrões em português? Não seria mais lógica uma atitude de compreensão e indulgência para a razão que leva tais nativos a parecerem mal-educados quando apenas revelam pouco domínio de uma língua que não sendo a dos seus ancestrais lhes interessa adotar e lhes agrada exibir em público?

Os palavrões emitidos entre seráficos sorrisos de criado que regressa do mercado ou carregador do cais voltando para casa fazem enrubescer damas e senhorinhas que tenham de apanhar certos machimbombos.

Os diálogos nos machimbombos, principalmente 7, 13, 11 e 19, realizam-se sempre em tom de voz bem alto. Às vezes há dois passageiros que conversam animadamente de extremo a extremo do carro. Isso não é problema. Qualquer pode ouvir a conversa. Não há cochichos nem sussurros discretos de quem tem segredos misteriosos.

Os passageiros dos machimbombos 7 e 13 soltam palavrões com um sorriso límpido na face sempre que conversam em português. Mas eles estão plenamente convencidos de que estão a falar bem. É precisamente assim que ouviram e aprenderam. O seu ouvido excecional captou as palavras exatamente como foram ditas e a boca repete-as numa volúpia de doce saboreado. Se não tivessem ouvido não o repetiriam tão frequentemente e tão alto. Ouviram, aprenderam e ninguém lhes disse que podiam ouvir mas não deviam aprender e muito menos repetir.

Penso nisto tudo e também nos erros que se cometem mesmo sendo culto, educado, instruído e de bom coração. Pessoas incapazes de ferir deliberadamente outras, fazem-no com relativa frequência e comprovada inocência. Mas fazem-no.

Quando a um africano de origem se diz, despreocupadamente aliás, que se vai comer uma “galinha à cafreal” não se pretende magoar. Exerce-se um costume. Emprega-se uma estafada expressão que designa certa especialidade culinária regional. Não há razão para quem quer que seja se ofender. “Galinha à cafreal” é uma galinha assada com piri-piri. Que mal tem isso? – Nenhum!

Mas a expressão “cafreal” é termo extremamente pejorativo. Vem de cafraria. De cafre. E cafre teve sempre um sentido pouco, muito pouco simpático. Cafre é coisa reles, rude, bárbara. Pertence a uma terminologia nascida em tempos muito recuados quando se estabeleceram os primeiros contactos com os povos exóticos de África. Mesmo tendo as circunstâncias mudado desde então[,] o apodo chegou aos nossos dias trazido de geração em geração. Ficou.

Mas “galinha à cafreal” é prato da culinária moçambicana que sendo já especialidade consagrada aqui e além-fronteiras devia ser rebatizado. Chamar-se-lhe galinha de qualquer coisa menos “à cafreal”. O que interessa é comer e gostar e não o nome a distinguir a sua qualidade original de modo tão “vincado”.

Os camarões cozinhados à moda nativa comem-se e têm muita saída e no entanto não são alcunhados de camarões à cafreal.

Quando todos os dias se diz calma e despreocupadamente que apetece uma “galinha à cafreal”, galinha está bem, cafreal, não.

 

 

JOSÉ CRAVEIRINHA

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10. 13 de dezembro de 1962

 

QUE A ONU SAIBA…  

 

Como exemplo típico de gratidão de que é capaz um negro angolano se deve realçar a atitude de um peticionário de nome Angelino Alberto, o qual perante os representantes dos países membros das Nações Unidas proclamou corajosamente o que sentia quanto à presença de Portugal e Angola condenando abertamente a ação da UPA e exaltando a colonização portuguesa.

Imediatamente atacado pelas delegações dos países afro-asiáticos, Angelino Alberto pôde parecer a todos aqueles membros da ONU que um africano só defenderia Portugal sendo um traidor à causa dos africanos pela sua liberdade política.

Com o episódio registado na sessão das Nações Unidas com o citado peticionário negro a falar bem dos portugueses no caso de Angola não se espantam aqueles que conhecem bem a política portuguesa em África. Esta política velha de quinhentos anos não só é capaz de produzir as verdades de um Angelino Alberto como muitos mais em qualquer parte do território onde flutue a bandeira das quinas. Angelino Alberto não é uma exceção. Aqui em Moçambique temos frequentemente prova de atitudes tão desassombradas como as de Angelino Alberto. São vários os negros e indivíduos de cor que publicamente se não constrangem em dizer da sua preferência pela governação portuguesa. São vários os negros e indivíduos de cor aqui em Moçambique com ânimo para ir também às Nações Unidas e falar do seu amor a Portugal e defenderem a política portuguesa seguida em África. E mais: sem se proclamarem adeptos de qualquer forma de independência para o país como esse tal Angelino Alberto mas apenas como portugueses que amam Portugal como sua Pátria.

Em Moçambique estamos já habituados a gestos de patriotismo português em manifestações públicas promovidas para desagravo da consciência nacional ferida pelos ataques sofridos nas bancadas internacionais por delegados de vários países, principalmente os de mais recente estatuto de independência.

Onde está o espanto pela atitude de Angelino Alberto? Se até agora só foi possível surgir um negro angolano a chamar bandidos aos membros da UPA não devem os delegados das nações afro-asiáticas ter dúvidas de que mais do que um moçambicano negro ou descendente de negro seria capaz de patrioticamente proclamar o seu amor a Portugal e a satisfação em que se mantenha em Moçambique para sempre a bandeira portuguesa. Não se trata, para esses africanos de Moçambique, de trair. Com certeza que o problema se não pode pôr dessa maneira. Para trair é preciso acreditar noutra coisa, ter em conta outros valores. E não é esse o caso dos moçambicanos que seriam muito capazes de ir à ONU como bons patriotas portugueses dizer em bom português que o são e se orgulham disso.

Angelino Alberto apresentou-se como adepto de uma organização política pró-independência de Angola. Em Moçambique temos africanos que seriam suficientemente corajosos para dizer o mesmo sem serem no entanto membros de qualquer partido para a independência de Moçambique porque nem sequer põem a questão. E são vários os nomes de bons portugueses africanos que apesar de nascidos em Moçambique consideram Portugal a sua Mãe-Pátria. Ao acaso citemos aqueles que já deram provas dessa lealdade como sejam: Dr.ª Custódia Lopes, escolhida para deputada à Assembleia Nacional; João Ribeiro, vereador da Câmara Municipal e representante de Moçambique em Congressos Internacionais da Organização do Trabalho; Enoque Libombo, dirigente ilustre do Centro Associativo dos Negros de Moçambique; Mário Chaguala, dirigente representativo das associações de classe de trabalhadores nativos de conta própria; Miguel da Mata, funcionário dos Caminhos de Ferro; Salomão Magaia, funcionário da Câmara Municipal, etc.

Como se vê, em Moçambique há africanos conhecidos que publicamente manifestam o seu portuguesismo e que não teriam hesitações nenhumas em afirmá-lo na ONU e repetir as declarações de Angelino Alberto.

 

 

J.C.

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11. 24 de dezembro de 1962, p. 02

 

CONVITE PARA TODOS

 

Há dias, um funcionário dos Caminhos de Ferro precisou de passar as férias e sugestionado pela intensa propaganda que nas telas dos nossos cinemas e na nossa rádio se faz quanto a escolher para isso alguns lugares da vizinha nação sul-africana pensou que sempre seria interessante conhecer vários desses pitorescos sítios a que era convidado em bom português.

O nosso funcionário pensou e resolveu. Ia gozar as férias à África do Sul. Mas com essa decisão começaram a surgir os contratempos. Tinha de preencher uns papéis que por sua vez seriam remetidos pelo consulado do referido país aos serviços de emigração e aguardar a devida autorização de entrada.

O nosso funcionário preencheu os papéis, deu as referências necessárias, citou até a particularidade fora do comum de ter avultado depósito em banco estrangeiro com sede na África do Sul e calmamente esperou a tal autorização para entrar no território do nosso vizinho sul-africano.

O nosso funcionário português de Moçambique esperou, esperou, esperou e a seguir recebeu a comunicação de que lhe tinha sido recusada a autorização pedida.

Cabe-nos a todos perguntar porque foi recusado o visto de entrada em território sul-africano a um português munido do seu passaporte, licença da repartição em que trabalha e das autoridades militares portuguesas para se ausentar para o estrangeiro, enfim, munido de todos os requisitos necessários para o que pretendia e dentro das normas exigidas pelas leis que regem os cidadãos moçambicanos.

Toda a gente argumenta com o respeito pelas leis de um determinado país em relação ao nosso. Toda a gente que assim pensa tem plena razão em acatar as leis de uma nação estranha. Mas neste caso não temos a certeza se a coisa se pode ver pelo mesmo ângulo de condescendência. O cidadão moçambicano que se mune de tudo quanto as autoridades do seu país exigem para viajar fora das suas fronteiras não pode ser alvo de tratamento diferente da de outro qualquer cidadão que nas mesmas circunstâncias não precisa de uma autorização especial solicitada para a sede do governo do território que deseja visitar. Nenhuma lei pode permitir que um consulado implante as suas leis em terra estranha e submeta os nacionais dessa terra a critérios diferentes dos daqueles por que se identifica como moçambicano com todos os direitos de cidadão maior e vacinado. Eis aí um aspeto de falta de respeito pelo país onde se está instalado sob um estatuto internacionalmente reconhecido pelos corpos consulares ou embaixadas.

Um consulado ou embaixada é pedaço político da nação a que pertence. Mas isso não dá direitos de qualquer tipo sobre os cidadãos da terra anfitriã. E muito menos atribui ou pode conferir poderes discricionários de escolha entre indivíduos que independentemente de fatores epidérmicos, ascendências ou quaisquer outras diferenças de origem geográfica são juridicamente iguais em território moçambicano, tanto que o seu bilhete de identidade ou passaporte é do mesmo modelo, formato, material, etc.

O caso do funcionário moçambicano com passaporte português perfeitamente em ordem que não foi autorizado a passar férias em país vizinho, a despeito de frequentemente ser convidado a visitar a África do Sul, a nadar nas piscinas da África do Sul, a hospedar-se nos hotéis da África do Sul, a pescar nas águas da África do Sul, enfim, a gozar as delícias paradisíacas da África do Sul, é um caso típico e vulgar que não pode continuar.

Porquê esta propaganda frenética e obsidiante para conquista de turistas moçambicanos na NOSSA rádio, nos NOSSOS jornais e nos NOSSOS cinemas se nem todos os radiouvintes, espectadores e leitores podem ser turistas, mesmo legalmente?

E já agora, porque é que de lá para cá não acontece o mesmo? Ou será boa norma só dos portugueses condescender, condescender, condescender em relação aos outros e não os outros condescenderem também em relação aos moçambicanos?

 

J.C.

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12. 27 de dezembro de 1962, p. 02

 

AINDA A PROPÓSITO DE UM TERMO PEJORATIVO

 

Desunhei-me aqui há tempos, a fim de demonstrar que havia uma carga pejorativa no uso de certas expressões, como por exemplo, dizer-se “galinha à cafreal”. Dizia eu então que o hábito de tal frase fazia com que muita gente nem sequer se apercebesse do pejorativo do termo[,] que portanto não havia com o dito intenção de ofender… mas ofendia.

A seguir aparece na sua secção do Notícias da Tarde o conterrâneo António Cabral e muito paulatinamente diz que não concorda que “galinha à cafreal” tenha qualquer dose pejorativa. E não diz mais.

Assim, não, António Cabral. Quando uma pessoa sai à estacada para dizer que outra está errada deve também esclarecer porquê. Não basta negar nem afirmar. É preciso ser-se claro e não criar confusões no espírito dos leitores crédulos.

Eu volto a dizer que “galinha à cafreal” tem significado amesquinhante porque:

O Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de António Morais, diz que Cafre é “homem rude, desumano e ignorante” e que Cafreal é “relativo ou pertencente aos cafres ou à cafraria” e como cafraria “terra onde não há senão gente boçal, estúpida e ignorante”. E ainda temos mais: cafrice é “ação própria de cafre. Suma ignorância e bruteza de juízo, barbarice”.

Se depois deste testemunho insuspeito do grande mestre da língua portuguesa, o meu amigo António Cabral continua a persistir na sua teimosia eu encolho-me humildemente e… calo-me. Não há controvérsia possível.

Em todas as línguas existem vícios de linguagem, chamadas também estereotipias.

Ninguém com um pouco de senso de delicadeza dirá perante uma pessoa de cor que deseja comer uma galinha cozinhada à moda dos cafres. E se António Cabral concorda em que esta maneira de alguém se referir à forma como a galinha é cozinhada pelos nativos não deixa de ter intenção ofensiva é porque aceitou que havia errado. Caso contrário é porque possui uma sensibilidade muito especial para determinado grau de subtilezas da linguagem corrente.

Todos sabem que o termo “caneco” designa pouco elogiosamente o indo-português e que, em suma, é pejorativo. Por isso mesmo não creio que o António Cabral em momento de cerimoniosa ou amistosa convivência com naturais da Índia ex-Portuguesa dissesse que gostaria de almoçar um “caril à caneco”. Tal atitude poderia ser tida como um ato de fácil descontração laurentina da parte do moçambicano António Cabral, mas que era uma autêntica falta de educação, respeito e consideração, isso era. Não vamos explanar mais ainda a ilicitude do termo e quanto ele não corresponde às boas falas a observar mesmo que não haja intenção de ofender.

E já que estamos com a mão na massa, como soe dizer-se, e mais uma vez tivemos de falar na “galinha à cafreal”, lembremos só que até os turistas estrangeiros que se deslocam a esta cidade preferem usar o “chicken piri-piri” em vez de um depreciativo “chicken kaffir”.

Basta, meu amigo António Cabral? Não me desgoste dizendo que não basta para o convencer de que não tem razão. E não tenha timidez em dar a mão à palmatória. No jornalismo acontece “meter-se água” de vez em quando. Persistir no erro é que se torna antipático. Todos nós podemos argumentar. O argumento é fruto do raciocínio. Se não temos argumentos e dizemos que está mal ou está bem somos aprendizes de jornalismo. Ora, um aprendiz de jornalismo é um perigo para a opinião pública, quase tão grave como um fascista ou um ultra a escrever impunemente em jornais. E V., António Cabral, sabe que Moçambique precisa de gente que saiba porque é que diz SIM ou diz NÃO.

António Cabral: Não deixe a sua secção ser dogmática, intransigente e super. Ponha-a a falar sem ser em tom de majestade infalível. Não deixe uma secção de jornal fazer ditadura. Isto é assim; aquilo é assado. Estamos todos fartos de “isto é assim, aquilo é assado”, não estamos, António Cabral? Pois estamos!

 

J.C.

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13. 30 de dezembro de 1962, p. 11

 

CONTACTO [5]

 

– Cuidado com os mabandido! Prendam os mabandido!

Ultimamente em foco, os grupos de mabandido têm causado pânico entre as populações suburbanas, principalmente devido à sua extrema belicosidade. Chamados mabandido, eles são uma ramificação do grupo dos maluva.

O que são na verdade esses grupos constituídos por serviçais domésticos?

Os recrutas dos grupos de mabandido são, na maior parte, serviçais domésticos normalmente ordeiros, bem comportados, criados exemplares e trabalhadores. Ninguém poderá reconhecer um mabandido ou maluva se o vir no dia a dia da sua vida profissional. Ao bom observador ele será denunciado pela gaita de beiços no seu ritmo certo e insistente.

Para que serve a gaita de beiços?

O maluva só atua ao som e compasso de um determinado instrumento musical. A gaita e a viola são os principais. A sonoridade desses instrumentos está mais perto da sensibilidade dos adeptos do ritual belicoso.

Um ritmo monótono, certo, empolgante da gaita ou das cordas da viola é o sinal. Os adeptos movem-se em passos de dança, giram sobre si mesmos, agacham-se, saltam, curvam-se. Os braços são brandidos no ar lentamente e bruscamente ferem o ar precisamente no tom sugerido pela melodia.

Iniciado o movimento a gaita redobra a cadência e os dançarinos obedecem movendo-se mais rapidamente em simulações de ataque e defesa, aproximando-se uns dos outros, cruzando os punhos cerrados no ar. Depois o vangavanga das gaitas torna-se obsessivo, febril, ardente. E um punho choca de repente com um corpo ou uma cabeça choca com outra cabeça. É o sinal. Cada um procura o seu par e começa o ritual dos maluva. Os socos são dados ao ritmo da música. Os movimentos têm de estar dentro da harmonia. Param ou recomeçam. Caem ou levantam-se. Oferecem o rosto à pancada do adversário. Esmurram o próprio peito e batem com as costas dos punhos fechados na testa e nas fontes. O sangue embriaga-os. Dão-se totalmente em holocausto à dor física. Vencem milhões de inimigos e morrem heroicamente por um ideal: viver o domingo como um dia diferente.

No meio do seu transe o maluva só distingue formas vagas em movimento. O maluva não tem inimigos. Ele é um Ser inatingível. Ele paira acima dos punhos transformados em hélices encantadas pela cadência das águas revoltas. A cadência do maluva são os ritmos das gaitas e das violas.

– Cuidado com o maluva! Basopa!

E aquele que não se afasta a tempo é colhido nas hélices que vibram na atmosfera incendiada de sons: – vangavanga… vangavanga… vangavanga…

O maluva não bate por vontade de espancar. Ele está em transe. Bate no seu peito. Bate na sua cabeça. Bate no amigo. Bate no irmão. Bate no cajueiro. Bate no muro da cantina. Bate no ar. Bate nos sons da pequena harmónica de boca a soprar o seu vangavanga inebriante.

Há um que dá o exemplo de mais coragem e maior sacrifício à dor. É o chefe. Aos mais tímidos ele inicia na liturgia do combate. Fende com os punhos o ar na frente do noviço. Bate com mais força na própria fronte. E subitamente ataca a um apelo mais vivo da gaita ou da viola. A melopeia de vangavanga e dlom-dlim-dlom das gaitas e violas confunde-se com o som das mãos duras no peito e na cara do novato. O ritmo cerca-o, arrebata-o, estrangula-o. Ele levanta instintivamente os braços no compasso da música e sente a carne estranha esmagada contra o punho. Sente que se libertou de um xipocué. Os pés tornam-se leves, os rins parecem elásticos agora. Uma névoa escarlate ilumina-lhe os olhos. Ele bateu. Ele faz sangue no inimigo. O seu braço é o mais forte do Mundo. Ele é um maluva de verdade.

Os maluvas não são um problema de repressão da delinquência. O seu caso é especialmente de âmbito social. É preciso encarar com seriedade o que representa o maluva como fruto de uma desambientação. O maluva nunca é ronga. Nunca é da cidade. Vem para a cidade trabalhar. Conquistar o pão. Ele depara no seu encontro com os novos horizontes da urbe e com uma série de coisas maravilhosas e ao mesmo tempo estranhas. Belas e hostis. Ele descobre que é um elemento desajustado e, vai então, cria um culto. Esse culto simboliza a evasão, a flagelação, a dureza e o estoicismo. Uma vez por semana ele encarna a rebeldia e a coragem e ao som da gaita ou da viola quebra o torpor de 6 dias seguidos de quintal, pratos, soalho e ferro de engomar.

O problema do maluva aparece no domingo. No dia de folga, quando o patrão lhe concede o descanso, ele não sabe que há uns bichinhos chamados letras e que alinhados uns à frente dos outros fazem autêntica feitiçaria. Uma feitiçaria onde não cabem vangavangas, socos na testa, murros no peito e cabeçadas nas paredes. Uma feitiçaria de bichos chamados letras dentro de jaulas chamadas livros.

O problema do maluva é esse.

A pouco e pouco eles vão caindo em si. O cansaço e o entardecer do domingo despertam-lhes a responsabilidade. Pequenino é um dos que limpa o sangue. Cada um vai recuperando a própria identidade. São horas de entrar no serviço. Senhor está à espera. É preciso pôr a mesa. Patrão já chegou.

– Pequenino!!!

– Mi senhora! – E pequenino lá vai, o rosto inchado, o punho dorido, o olhar tímido, os pés agora pesados no parquete, o corpo duro dentro do avental aos quadradinhos.

Pequenino é um criado exemplar.

 

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14. 06 de janeiro de 1963, p. 13

 

CONTACTO

 

É aos fenómenos socioeconómicos que se deve responsabilizar qualquer inibição do homem de cor ao exprimir-se por meio da literatura e das artes plásticas.

E porque o artista é um criador de coisas do “seu mundo”[,] todo o poeta tem algo a dizer, seja branco, negro ou amarelo[,] mas o negro porque é elemento que se debate mais do que nenhum outro grupo étnico em profundas subconfusões económico-sociais tem, além de algo, outras mais importantes a dizer.

Mas o negro porquê? Por causa da sua pele escura? Seria absurdo, até porque a noção da escravatura ligada ao negro é moderna em relação à idade da escravatura humana pelo homem, quando povos da atual Europa, os bárbaros de então[,] eram vendidos como escravos nos mercados.

Portanto, o artista é um embaixador do seu tempo. E nisso está a sua validade e até a sua eternidade.

Quando a aguda inteligência de Rui Knopfli ao serviço de uma concisa linguagem poética das mais belas da poesia moçambicana nos diz no seu livro Reino Subsariano:

 

– Diz-me, velho Dotana,

cidade tem dentes?

– Mulungo, cidade tem dentes,

cidade tem dentes de n’goenha.

 

é uma posição assumida perante o tempo histórico pelo poeta moçambicano. Porque é que Rui Knopfli dota a cidade de África com dentes de jacaré prontos a morder o velho Dotana? Porque é que a cultura europeia de R. K. se ampara no vocabulário de uma língua nativa com o mulungo (senhor) e n’goenha (jacaré) se não para situar a sua poesia no contexto histórico em que vive? O que seriam essas palavras hoje ou amanhã como poesia válida sem a motivação que as desencadeou? Palavras. Mas as palavras por si sós fazem o poema? Podem as palavras surgir sem uma matriz emocional, sem motivação? Como? Por dom espontâneo ou mágica?

As palavras são o reboco mas o edifício do poema é o assunto, o tema, a motivação. Isso é que dá os alicerces ao poema para além da superfície luminosa das palavras e a sua faceirice fonética.

Por isso é sempre gratuito falar-se em linguagem poética “independentemente da motivação”.

Voltando ao assunto, é ainda o poeta Rui Knopfli que, mais moçambicano do que nunca, enraizado no folclore da sua terra natal, quem continua a fazer história, a trilhar coordenadas de angústia étnica mas não fazendo racismo literário porque é questão que nem sequer se põe:  

 

– Diz-me velho Dotana

cidade tem fantasma?

– Mulungo, Dotana não tem medo

xipócuè do mato.

Dotana tem medo grande,

xipócuè de cidade

 

E outra vez é Rui Knopfli que se extrema lúcido num “ato de libertação” porque “Um poema e um quadro são a liberdade eles mesmos” e se afirma – ah! é sempre odioso e mortífero o “racismo que não se perdoando em Hitler se não poderia aceitar em Nkrumah["] – ao rematar no seu poema em figuração simbiótica:  

 

Dotana, velho Dotana,

estendes-lhes a mão? – Mulungo,

branco aperta a mão de preto?

 

São estas as implicações do presente imperfeito e futuro perfeito em que Dotana é um facto em relação ao mundo circundante e é posto “de indicador retesado e estendido à barriga do artista”.

Ora, o problema que se põe hoje, às consciências, é: Quem tem coragem para ouvir as acusações sem se melindrar com as verdades? E quem tem coragem para ver outrem reafirmar-se igual como homem e realizar-se livre e culturalmente diferente sem se sentir molestado e odiado?

E aqui surge então a pergunta: Mas qual é o verdadeiro conceito do Ódio?

Um indivíduo irado pode explodir a sua cólera sem ser impulsionado pelo ódio. Cólera é um impulso e ódio um sentimento.

O não aceitar-se no artista uma motivação cultural diferenciada segundo as problemáticas do meio ambiente estávamos [sic] em presença de um “paternalismo” artístico-intelectual, uma espécie de “trust” imperialista da individualidade. Como se não fosse uma verdade reconhecida e aceite a diversidade das culturas de povo para povo e de continente para continente.

E se dada comunidade é alvo de conflitos de interesses de super e infraestruturas durante gerações, criou-se com isso a oficina da motivação social, tanto subjetiva como concretamente. E o quadro que daí nasça ou a poesia que dele surja serão imperfeições morais mas nem por isso fenomenologia menos autêntica do Mundo dos homens, para os esclarecer, encaminhar e denunciar. É o meio que tem de ser transformado em função do homem e não o homem em função da literatura.

Porque entre os milhões de prisioneiros de diferentes procedências dos nazistas, os judeus tinham, além de algo como os outros presos, coisas mais importantes a dizer prova-o e bem a história do antissemitismo nas denúncias ao nazismo que chegam até aos nossos dias. De tal antissemitismo de dimensão cósmica se apercebe a sensibilidade atormentada do poeta R. K. quando no seu poema “Exílio” faz disso estado de alma:  

 

Este gheto

sob olhares viscosos

e assimétricos.

 

e isto sem fazer primado de um racismo ao contrário como é receio declarado, mesmo entre gente bem intencionada e complacente mas ciosa de tudo quanto comodamente herdou.

Porque é que hoje ao poeta de cor Rui de Noronha se reconhece valor mas se nega validade como poeta moçambicano? Porque foi para Moçambique o que Machado de Assis foi para o Brasil: um espírito que se “esqueceu” dos problemas sociais que transformavam a sociedade à sua volta, não participando ativamente nessa transformação.

É Rui Knopfli – perdoem a insistência neste poeta mas ele é dos casos mais flagrantes de seriedade poética em Moçambique – que no seu livro O País dos Outros nos expõe verdadeiro postulado no seu poema “Carta a um Poeta Mais Novo”:  

 

E, sobretudo, sim

sobretudo não esqueças as inquietações do

tempo presente.

Deixa morrer a onda dos teus dramas

no cais do drama comum.

Não voltes as costas,

não te isoles. 

O deserto é belo, mas bruto.

Junta a tua voz à surdina

do pranto geral.

Acrescenta o mundo dos outros

na oferta do teu,

embebe, amplia o canto, no rumor

das mil vozes

e na estrada que leva ao coração dos homens.

 

Ainda aqui o poeta apela para “as inquietações do tempo presente” e para que o Poeta Mais Novo “não volte as costas” mas acrescente “o mundo dos outros” com a oferta do seu.

E porque Mário Dionísio também tem algo a dizer sobre o assunto, damos-lhe a palavra: “Nenhuma eficácia é alcançável, se esquecermos que o artista é parte inseparável da realidade e das suas transformações, que a natureza não é um espectáculo imóvel e o pintor um espectador que na frente dela se limita a escolher um bom lugar à sombra para a copiar; se esquecemos que no acto de vê-la está ele já a transformá-la, que ele só pode, como qualquer homem, realmente vê-la com a totalidade da experiência acumulada, diferente de época para época. Que tudo se altera à nossa volta pelas nossas mãos e que cada coisa que alteramos nos altera. Se esquecermos que é preciso sofrer a vida toda para se poder exprimi-la e dominá-la, vivê-la de dentro até ao fundo, incluindo as decadências, para se poder fazer delas a carne e o sangue de uma nova alegria. Que é preciso tomar a realidade toda, a realidade incómoda, discordante, desconcertante não só para observá-la e registá-la, mas efectivamente transformá-la – e que só isso é realismo. Se esquecemos que não se pode criar senão com o que existe e a partir do que existe”.

Quando o poeta Rui Knopfli no seu belo poema “Xituvana” aceita em vez de paloma ou colombe a xituvana, ele não opta por um conceito de pomba racialmente neo-africano. A xituvana para o poeta é simplesmente a pomba ronga, a que o poeta dá o seu lugar de símbolo ao lado das outras pombas. Não vemos aqui racismo de antítese nem restrição de simbologia mas sim o poeta componente de uma característica realidade sociológica afirmando-se teluricamente com materiais de estética folclórica no enriquecimento das clássicas metáforas universais.

Com o tráfico escravo da África para as Américas feito na escala de milhões de negros, o problema do esclavagismo tomou um significado racial, embora desde a mais remota antiguidade já existisse a exploração do homem de pele branca e a sua escravatura. A escravatura ficou identificada com o negro.

Isso criou e movimentou universalmente um mecanismo social em relação ao negro, tornando este uma grande família social, ou melhor ainda[,] uma classe. Pois é como classe que o indivíduo de cor passa a reivindicar uma posição e a insistir de vários modos publicamente efetivos (desportos, artes, literatura e ciências) na sua emancipação como homem no xadrez das culturas universais.

Pretender uma doutrina poética com a abjuração da motivação sociocultural é negar o psicológico na criação artística; argumentar contra uma “antítese do preconceito racial” sem que haja cessado a causa é condenar no mesmo grau o doente e a doença.

Um artista reagirá agudamente sob a influência do meio sempre que este não seja étnica e culturalmente homogéneo, pois o sentido de uma reação coesa do “grupo negro” em todos os continentes torna as reivindicações do homem de cor não um racismo de antítese mas um vasto problema de classe em eclosão, paralelamente ao problema judeu em grande escala e ao problema cigano em pequena escala. Quando o judeu, fiel a uma tradição cultural, reivindicou um território, se fixou nele e o defendeu e defende com unhas e dentes, não o fez nem o faz por ódio às outras raças. Fá-lo por si, mas para além da “vingança racial”. Se não há xenofobia numa atitude de afirmação culturalmente semita, porque há de haver ódio racial numa atitude de afirmação “negra”, essa coisa tão vaga e que tem várias línguas, vários costumes e vários caracteres somáticos de grupo para grupo e de região para região no continente africano e fora dele?

 

JOSÉ CRAVEIRINHA

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15. 08 de janeiro de 1963, p. 02  

 

PONTO FINAL NA GALINHA À CAFREAL

 

Sr. Almeida Costa:

Li com agrado a sua carta pró “galinha-à-cafreal”. Com agrado porque toda a sua veemente argumentação a favor do termo em litígio, não dando motivo de feroz querela só vem confirmar determinados pontos de vista em relação a outros inabordados problemas.

Que o facto de o sr. Almeida Costa, perante uma galinha cozinhada “à cafre”, só se lembrar do seu apetite e estar completamente alheio a possíveis susceptibilidades de índole racial no que respeita aos povos a quem podem ser atribuídas as “virtudes” inerentes a “cafres” abona apenas quanto eu já havia dito: embora sem intenção de ofender, o uso do termo não deixa de possuir carga injuriosa.

O sr. Almeida Costa quase põe as suas objeções sobre o pejorativo ou não pejorativo do vocábulo “cafreal” em relação à hipótese de desagrado da galinha. Ora, a galinha não se ofende nem pode ofender-se. O pejorativo entende-se em relação a um grupo humano.

O sr. Almeida Costa não sente vontade nem tem intenção – creio-o piamente – de ofender quem quer que seja ao enfrentar uma “galinha-à-cafreal”, pela simplicíssima e explicável razão de que para  a sua sensibilidade apenas está em causa o próprio paladar em função imperiosa do seu estômago.

Posta a coisa nos limites restritos de uma satisfação de apetite comestível e a questão em termos de sabor e barriga não há dúvida de que o problema não teria merecimento de polémica e se tornaria mera discussão ao nível de cozinheiros ou adeptos de pantagruelismo, o que imediatamente faria o assunto perder ponta que fosse de conteúdo psicológico em detrimento de um elevado número de habitantes de uma terra, os quais teriam inventando a tal maneira de cozinhar uma galinha nas brasas. O problema teria assim fácil e cómoda arrumação no ramerrão da fraseologia popular. Mas parece que assim não é.

Vejamos: De maneira alguma pretendi ou pretendo condenar aqueles que empregam o termo “cafreal” para designar uma certa especialidade culinária regional. Seria um contrassenso, um disparate e uma injustiça “enforcar” alguém por faltas cometidas por transmissão de herança. O mal está antes na origem do que no efeito. “Não foste tu, foi o teu pai” é lenda velha do lobo que precisou de pretexto para devorar o cordeiro. No caso que se discute, o sr. Almeida Costa, o sr. António Cabral e muitos outros são também vítimas da escravidão dos hábitos. Hábitos com o lastro de 500 anos não se modificam facilmente. Passam a ser uma segunda pele, assumem tamanho de verdades e de tal modo se tornam equipamento familiar na linguagem e nas atitudes correntes que se lhes não percebe o gume e extirpá-los se afigura operação dolorosa ou violação de património moralmente legítimo. Pura confusão.

A “galinha-à-cafreal”, ou seja a “galinha-à-boçal”, constitui uma estereotipia de subjacente injúria racial. Em tal designação – note-se bem – não se localiza uma certa localidade ou os seus habitantes em relação à forma de preparar um certo prato, mas sim se referencia através dela uma raça supostamente inferior no conjunto humano.

“Galinha-à-cafreal” não situa nenhum lugar de Moçambique em particular, até porque não conhecemos tribo, grupo clânico, ou povo moçambicano que responda ao nome de “cafre” e também porque do sul ao norte do território os naturais possuem maneiras distintas de assar folcloricamente a nossa heroína galinha. Portanto, o termo “cafreal”, acrescentado ao nome do galináceo, abrange uma área geograficamente continental, ou seja de latitude africana, pelo que o apodo não tem outra interpretação mais suave ou menos agressiva do que a que lhe foi conferida desde o princípio para apontar desprezivelmente os povos primitivos da África. “Cafre” é cafre, e mais nada, não só no dicionário mas em todas as formas da linguagem corriqueira ou cerimoniosa.

Certamente que não é meu intuito impor a extinção do uso do vocábulo nem o desprazer em quem dele faça necessidade insubstituível de fiel expressão do seu pensamento, sempre que ao seu paladar acuda a lembrança de uma satisfação culinária, mas apenas legítima ação de apontar mais um “cliché” do preconceito racial comummente aceite e sem razão de ser, justificação em manter-se ou cuja expansão interesse defender-se.

Posta a questão em termos de inocência de quem maneja vocábulo de sentido racialmente afrontoso, não é de respeitar-se a sensibilidade de quem nele se veja humilhantemente retratado, como em caso paralelo de vício de linguagem se não deverá deixar de chamar “caneco” a um indo-português, “monhé” a um indiano, “labrego” a um português, assim como se não modificará o costume que muitos adregam não dispensar quando a indivíduos que podiam ser até seus avós na idade, sendo seus criados ou serventes no serviço, porque são africanos de origem são distinguidos sempre com o tratamento geral de “ó rapaz” e às mulheres, mesmo dignas de tratamento mais respeitoso a que as rugas e as cãs dão direito, são indistintamente chamadas “ó rapariga”, o que, se noutro lado é mera destrinça de condição social, em África, por reservado a pessoas de uma certa raça, ganha um significado de agressividade de que noutra parte é inteiramente virgem.

A engrenagem da máquina dos hábitos é assaz suficiente para alterar o curso da capacidade emotiva do homem no exercício das mais heterogéneas funções, quais as de cirurgião, magarefe, coveiro, analista, carcereiro, etc. Daí não me espantar, nem ter como sinal de aversão racial premeditada uma insensibilidade no uso do termo “galinha-à-cafreal” por pessoas de boa formação moral e cultural, mas revestir-me de um fatalismo tradicional, “poder de encaixe”, ao deparar com opiniões pró-cafreal por parte de um estudioso de aspetos culturais locais, o condiscípulo que muito admiro, Rita Ferreira, e um intelectual moçambicano de vanguarda, o poeta Rui Knopfli, e que hajam ambos transposto a mesma porta falsa do preconceito da linguagem e ainda terçassem lanças a favor da inocuidade demopsicológica do termo “cafreal”, um considerando-o legítimo e outro sem importância.

Parecendo que não, são estas “coisinhas”, ao longo de gerações tornadas triviais, muito importantes, tanto como a opinião de um jornalista certamente também filado nas impiedosas e apertadas malhas da rede dos costumes, os tais “clichês” mentais, quando no Notícias da Tarde do dia 2 deste mês, a propósito de barcos navegando na praia, muito angelicamente e com certeza sem intuitos de ofender, alguém escreveu: …os barcos – com ou sem motor – vêm para a orla da praia, sobre as cabeças dos banhistas “gingar” à preto.

A imagem “gingar à preto” e o termo “galinha-à-cafreal” são frutos maduros de uma mesma árvore de velhas raízes e bem nutrida fronde.  

E porque quantos caem em tais armadilhas da linguagem convencional vêm depois muito convicta e sinceramente declarar que não tiveram, não têm e nunca terão intenção de ofender, deverá isso servir como refrigério, consolação e mesmo aplauso dos que se sentem visados? Os pruridos extinguem-se ou tornam-se sem razão por não haver premeditação ou má fé numa ofensa?

Devem os atos injuriosos constituir norma quando sejam praticados sob declaração de boa fé, inocência ou alheamento?

P.S. – E agora prometo não mais voltar ao assunto. Estamos de acordo. O uso da palavra cafreal relativamente aos cafres é coerente. É certo. É natural.

 

J.C.

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16. 13 de janeiro de 1963, p. 13

 

CONTACTO  

 

Caro Gouvêa Lemos:

Focou V. o delicadíssimo problema que é a opinião escrita e aceite por certos órgãos da nossa imprensa moçambicana. E lamentou especialmente que certo tipo de comportamento publicamente confesso começasse também a aparecer no jornal Notícias. Eu compreendo a sua reação. Custa imenso ver um jornal como o Notícias a enfileirar nas correntes de pensamento mais indesejáveis no momento que atravessamos. Custa e assusta.

Como aditamento ao “Teclado” aqui estão uns respingos de um croniqueta publicada no Notícias de ontem e que por não levar assinatura se deve atribuir ao próprio jornal, portanto da sua responsabilidade:  

 

"O pé descalço não é o único problema a focar neste mar de problemas que temos de encarar de frente. Há muitos e citarei de momento os que considero principais: É a porcaria, a falta de higiene geralmente verificada; é a questão do vestuário, sujo, farrapos a maior parte das vezes; é o alcoolismo, aceite como um «uso e costume» e a que nós civilizados fechamos criminosamente os olhos; é o absentismo tolerado pela força das circunstâncias; é a preguiça e a inaptidão para o trabalho; é a arrogância, a indisciplina, a má-criação fundamentadas na brandura das nossas leis.

Acabou-se o indigenato. Muito bem. Há umas boas dezenas de anos que devia ter acabado. Mas verificou-se se a maioria dos autóctones estava em condições de compreender o que se lhes dava? Criou-se a contrapartida do benefício que lhe[s] foi concedido? Criaram-se as necessidades que os obriguem a sair do antigo para entrar no moderno?

Nada foi feito. Resultado: Vadiagem, indisciplina, arrogância, má-criação. Indiferença absoluta pelo trabalho, com a consequente falta de pagamento do Imposto Domiciliário.

Não temos discriminação racial? Óptimo. Só somos de louvar por isso. Mas temos ou não temos uma missão sagrada de civilização? É essa, incontestavelmente, uma das nossas principais missões. E não a estamos a cumprir. Só se está a dar ao autóctone ilustração e… liberdades! É muito pouco. Precisamos de lhe dar essencialmente educação e isso tem sido inteiramente descurado!

Educá-los, sim. Desde o ensiná-los a comer até a dominar os seus risos alvares, inconvenientes e a maior parte das vezes despropositados; educá-los, sim, a não se embebedarem por sistema, mostrando-lhes os inconvenientes que tal vício representa: a degenerescência, o embrutecimento, a animalidade dos seus gestos e atitudes debaixo da influência do álcool; educá-los, sim, mostrando-lhes que o trabalho dignifica, que há que cumprir o trabalho para que se contrataram, que há que respeitar horários de trabalho e as normas do mesmo, que respeitar o patrão; educá-los, sim, a andarem convenientemente calçados e vestidos, a lavarem-se.

Há que tomar medidas coercivas que os obriguem a compreender que se estão a ter cada vez mais regalias, estas também lhes impõem obrigações.

E em alguma parte do mundo civilizado já se viu entrarem em transportes colectivos pessoas de pé descalço, ou vestidas com farrapos, ou porcas e a cheirar mal? Já se viu nos aglomerados populacionais pessoas andarem vestidas (?), ou descalças, ou porcas, como vemos por esta Província fora?

Permitir-se-ia, em qualquer parte do mundo civilizado, ébrios percorrerem as ruas dos aglomerados populacionais e as estradas desta Província, aos bordos, gesticulando e gritando? Aonde é que já se viu a tolerância que existe entre nós para essa multidão de ébrios, principalmente durante a época do caju?

Esta nossa tolerância não nos dignifica, pois tacitamente estamos a contribuir para o embrutecimento, degenerescência da raça negra.

Temos que pegar o boi pelos cornos e deixar de ter medo da ONU e dos Senhores que lá pontificam que só encontram pedras para nos atirar, não se lembrando dos telhados de vidro que têm.

Os factos estão à vista de nós todos. Todos deles temos conhecimento. Não são casos isolados para que possam passar despercebidos.

Não nos venham os teóricos com as suas teorias, os poetas com a poesia.

Só quem desconhecer inteira e absolutamente os usos e costumes indígenas, ou fingir que os desconhece, só quem não tiver olhos para ver, deixará de concordar com o que atrás se diz.

Ou vamos continuar a fazer como o avestruz?"

 

Depois de se ler o que atrás se transcreve podíamos gastar um milhão de palavras a rebater o conteúdo de tão compreensivo ponto de vista sobre o que se atribui exclusivamente ao africano de Moçambique e provar que o autor do referido escrito devia ficar sob a imediata alçada de uma ação socioeducativa. Mas não faremos isso porque preferimos deixar à consideração dos leitores a aprovação ou o repúdio de ideias tão desassombradamente expendidas em órgão da imprensa moçambicana com cunho redatorial.  

Caro Gouvêa Lemos: sou da opinião de que é pena que o Notícias também já faça seus mimos deste quilate. Muita pena!  

 

P.S. – A croniqueta é da cidade de João Belo e tem o título “Ilustração e Educação de Pequenino”. 

 

JOSÉ CRAVEIRINHA

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17. 17 de janeiro de 1963, p. 02

 

FALANDO COMO DEVE SER

 

Almirante [6]:

Regressou V. Ex.ª novamente ao nosso convívio moçambicano. Não tenha V. Ex.ª como irreverência o não lhe falar das manifestações havidas à sua chegada, por habituais tais praxes dispensadas a todos os governadores que chegam ou partem. No entanto, permita-me V. Ex.ª que ao homem temperado pelas rudes cóleras dos oceanos ou dado às longas reflexões em noites de calmaria venha um cidadão que não foi ao aeroporto, não por intenção mas porque é minha norma em tais casos timidamente lá não ir, dizer-lhe que ouvi pela rádio as palavras proferidas pelo Homem mais que pelo Governador-Geral e dirigidas em linguagem clara ao povo de Moçambique.

Almirante:

Medem-se os homens pelo grau da sua sinceridade em função das circunstâncias mais do que pelos encantatórios floreios de persuasivas falas. E as palavras que V. Ex.ª, Almirante, nos diria à chegada valeram muito mais para os moçambicanos do que todas as promessas de concretização das aspirações do povo de Moçambique de norte a sul.

Disse o Almirante que não trazia poderes, que não tivéssemos outras esperanças e que contássemos só connosco para o engrandecimento de Moçambique. Assim é que é falar, Almirante. Com a franqueza do homem a quem repugna a má-fé e antes prefere fazer doer com a verdade do que proporcionar prazer com ilusões. E disse mais: Que Moçambique havia sido a sua escola de trabalho e onde teria formado a sua consciência cívica.

Esta mensagem do homem que regressa após precisamente três meses de ausência dá-nos a certeza do seu moçambicanismo adquirido nos anos de trabalho humilde aqui passados, não esquecidos quando sobraçou a pasta do Ultramar e reatados mais intimamente como Governador-Geral.

Almirante:

Cabe a V. Ex.ª terminar a sua escola de trabalho onde declara abertamente haver ela começado: em Moçambique.

São muitos os problemas a enfrentar para a reabilitação de Moçambique no consenso internacional. E homem para não virar a cara às dificuldades políticas que atualmente existem e aos sentimentalismos que possam sobrepor-se a um destino histórico jamais concebido é como nenhum outro V. Ex.ª, governante em quem residem todas as virtudes exigidas a um autêntico iniciador de uma dinastia de homens cuja coragem torne Moçambique uma pedra mais atuante no xadrez de uma Comunidade Portuguesa, vértice ideal de um fenómeno de cultura pluricontinentalizada.

Quis V. Ex.ª corresponder à presença de vários setores da população de Lourenço Marques com palavras preciosas pela sinceridade ao colocar a verdade entre o governante sobre quem pesavam as mais desencontradas expectativas e os seus governados.

V. Ex.ª voltou. Neste momento é isso que mais importa e não os poderes que houvessem de lhe ser conferidos e que V. Ex.ª se não alheou de confessar não trazer para Moçambique. E o que mais interessa é que nós moçambicanos, tenhamos a certeza de que V. Ex.ª voltou sem mais poderes do que aqueles que já lhe tinham sido distribuídos para que possamos então depositar nas suas mãos por nosso sufrágio incontestado todos aqueles que estão só ao nosso alcance dar-lhe incondicionalmente para sempre sem olhar a outras razões que as que V. Ex.ª mesmo invocou para engrandecimento deste Moçambique e significam tão-somente o destemor em não permitir que se fique de braços cruzados quando se pode ser ultrapassado.

E aqui estamos, Almirante, com o espírito de sacrifício pedido por V. Ex.ª, prontos para enfrentar sem medo o futuro mais duro que os ventos da história venham a exigir que V. Ex.ª compartilhe connosco aqui em África.

Ao regressar a Moçambique num momento de tão difícil conjuntura contraiu V. Ex.ª um compromisso que transcende aspetos da política de descentralização e integração tão discutidos ultimamente entre os que por uma razão ou outra se consideram identificados com os interesses de Moçambique e a valorização integral de moçambicanos por nascimento ou por voluntária adoção.

São homens que escrevem as grandes páginas imorredoiras da História. E Moçambique sentiu neste seu regresso, Almirante, que o Marinheiro de pulso firme que soube vincar uma personalidade com o talha-mar da sua vontade não voltaria a Moçambique se não sentisse estar-lhe incumbida pela própria consciência de homem íntegro uma missão que de tão sagrada e ímpar, outro que não possuísse o seu arcaboiço de homem afeito às maiores procelas e experimentado nas du[r]as e imprevistas batalhas dos homens não lhe poderia com o peso, com a responsabilidade nem com a inevitável dura faina da radical mudança.

Almirante:

Porque dos fracos não reza a história, quereria – quem sabe? – o destino reservar a V. Ex.ª por eleição um capítulo como nenhum outro tão árduo na vida de Moçambique, pondo à prova aquela consciência cívica e o querer que é apanágio do carácter de V. Ex.ª por amor da sobrevivência absolutamente ainda possível de uma paz perfeita entre todos os que neste território estão e mais os que ainda possam ser aqui de braços abertos recebidos para bem do Progresso de Moçambique.

V. Ex.ª, Almirante ilustre, tem aqui os poderes para governar e tem aqui o povo em quem V. Ex.ª desde que no regresso falou à boa gente de Manica e Sofala e em Mavalane se dirigiu, visivelmente comovido pelo moçambicanismo da receção, à população da capital, exprimiu o seu voto de confiança.

Sr. Almirante e Ex.ma Esposa:

Tomai à confiança os poderes que este povo de Moçambique vos conferiu na assembleia realizada na capital de Manica e Sofala e sancionada na capital de Moçambique, quando V. Ex.as ali haviam de ser acarinhados em sessão magna de boas-vindas, que esses poderes chegam para que V. Ex.ª, Almirante, faça de Moçambique o que Moçambique na realidade deve ser.

 

J.C.  

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18. 20 de janeiro de 1963, p. 09

 

CONTACTO

 

Sr. ª D. Maria Helena Figueiredo Lima:

Nascida aqui em Moçambique mas jornalista no Brasil, portanto jornalista brasileira quer queira quer não, houve por bem dirigir-me através da revista beirense, Moçambique Ilustrado, tão mimosa reprimenda quão deliciosas açucaradas festinhas. A primeira ao jornalista e as últimas ao poeta. Porquê? Primeiro: Não discuti a sua qualidade nacional mas frisei a sua qualidade profissional: Se é jornalista no Brasil é jornalista brasileira. Segundo: A senhora jornalista brasileira havia afirmado quando aqui estivera, relativamente aos jornalistas moçambicanos, que: “No entanto aqui escreve-se bem e acho, portanto, estranho que esses valores não possam expandir-se e criticar”.

Quando a delicada e tão amável jornalista brasileira, extasiada admiradora do “poeta Craveirinha”, proferiu a frase que transcrevo antes, não há dúvida que admitiu a hipótese de os jornalistas moçambicanos não merecerem “expandir-se e criticar” caso a senhora não tivesse comprovado saberem eles escrever. É ou não é assim, gentil conterrânea e jornalista brasileira?

Tendo sido admitida a alternativa, onde está a incongruência do protesto exarado no “Contacto”?

Senhora: eu não a chamei “palerma”. Primeiro, pelo respeito devido a uma senhora e segundo porque a sr.ª D. Maria Helena de Figueiredo Lima provou com a viagem que a reteve entre nós algum tempo e as conclusões tão inteligentes, que ninguém em Moçambique está em situação de refutar, a que chegou sobre tudo quanto viu em Moçambique não ser de forma alguma absolutamente nada palerma. Pelo contrário, muito esperta, que é antónimo de palerma.

Argumenta V. Ex.ª, moçambicana senhora e brasileira jornalista, com possíveis limitações de redação no exercício da profissão de jornalista. Com certeza! Há bons e maus jornalistas, como há bons e maus médicos e bons e maus sapateiros. Mas são jornalistas, médicos e sapateiros. E é nessa qualidade que lhes atribuímos índice valorativo: bom, medíocre ou mau.

A senhora D. Helena levantou uma hipótese, pôs de pé uma dúvida, preconizou uma alternativa. Isso é que esteve em causa.

Quanto ao resto da sua encantadora epístola, trata-se de mera especulação entre o prazer de maternalmente dar um puxão de orelhas ao jornalista, a delícia irónica de chamar “meu” ao poeta Craveirinha e a evidente generosidade de elogiar um poeta cuja obra desconhece.

De tudo extraio um determinado número de conceitos, alguns dos quais avaramente guardarei por enquanto, mas outros não esconderei como desagradando ao “poeta Craveirinha” que a jornalista brasileira, Maria Helena de Figueiredo Lima, haja encontrado nos seus (dele) poemas motivo do panegírico melífero de “poeta brilhante”, uma vez que são antagónicas as virtudes do afã jornalístico de V. Ex.ª com aquilo a que considera “belíssimos versos” do “poeta Craveirinha”. Faço espanto de tão insólito facto, não vendo nem remota associação entre as ideias da jornalista D. Maria Helena Figueiredo Lima e a poesia do tal poeta de Moçambique tão meiga e generosamente tratado na resposta ao “Contacto”.

Quanto ao parágrafo em que V. Ex.ª, gentil senhora, diz: “Portanto, não censuro publicamente os rapazes da imprensa por terem aplaudido minhas palavras; é que eles conheceram-me pessoalmente e interpretaram minhas palavras devidamente. É só isso!”.

Eis explicada a minha falta. É que para interpretar devidamente as palavras da sr.ª D. Maria Helena Figueiredo Lima é condição suprema conhecê-la pessoalmente e como eu não tive esse privilégio, natural é que errasse a interpretação. Mas como os “rapazes da imprensa” a que se refere a colega jornalista se restringem só ao que agradeceu o elogio, terá a senhora que retificar o número para singular.

Mesmo assim, permita-me, senhora, que julgue estranho ter que se conhecer pessoalmente um jornalista para interpretar devidamente as afirmações que o mesmo subscreva.

Seja como for, aqui me traz o dever de pedir desculpa a uma senhora por pretensa culpabilidade de a haver metaforicamente considerado palerma e garantir-lhe que a tenho justa e precisamente em conceito inverso por tudo quanto da sua lavra tenho ultimamente lido acerca de problemas que a ambos dizem direta ou indiretamente respeito: Moçambique.

Façamos então as pazes, D. Maria Helena Figueiredo Lima, e consideremo-nos quites pelas ofensas mútuas de: interpretação errada que dei às suas palavras explicada por não haver antes experimentado a honra e o prazer de a conhecer pessoalmente quando aqui esteve, como por me considerar lesado em nome do tal “poeta Craveirinha” pelas apreciações favoráveis à poesia dele e o convite a que lhas remeta para publicação, fazendo “ver aos brasileiros como se faz boa poesia em Moçambique…”.

Será profissão de orgulho, mas aqueles que conhecem as coordenadas da poesia do “poeta Craveirinha” e a linha de rumo dos artigos da jornalista Maria Helena Figueiredo Lima compreenderão em toda a sua extensão a impossibilidade absoluta de conciliar coisas tão opostas.

 

 JOSÉ CRAVEIRINHA

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19. 22 de janeiro de 1963, p. 02

 

REPOVOAMENTO DO ULTRAMAR

 

Tornou-se lugar comum entre alguns iluminados africanistas descobrir e publicamente anunciar que há uma necessidade urgente de povoar territórios como Moçambique e Angola. Para tal se concretizar lançam unanimemente mão do argumento miraculoso de se aproveitar o recurso humano representado pelas tropas metropolitanas vindas para África em missão de soberania portuguesa como machambeiros no mato.

A solução para o problema de um repovoamento por meio da fixação das unidades militares destacadas em serviço parece conter apenas uma eficaz terapêutica para o desenvolvimento demográfico de Moçambique com absoluto alheamento do que mais interessa: mão-de-obra especializada.

É na existência de mão-de-obra apta a garantir um apetrechamento técnico eficiente nos diversíssimos sectores de atividade de que depende o progresso de Moçambique que deverá consistir toda a campanha de fixação de emigrantes em territórios em princípio de desenvolvimento económico e social.

Assim, não repugna considerar como soluções abstratas todas aquelas que em coro são apresentadas pelos que se afligem devido à falta de braços vindos da Metrópole para as vastas regiões tropicais do Ultramar, a fim de aqui serem instrumentos de uma política de povoamento.

Admitindo-se que Moçambique fosse território ainda despovoado e não fosse o índice migratório das suas populações anualmente representado por muitos milhares de homens válidos que para outros países vizinhos em períodos regulares vão trabalhar como mão-de-obra não especializada, teria de se considerar a hipótese inteiramente legítima de por todos os meios possíveis promover o fluxo de famílias metropolitanas em direção a África. Mas porque tal se não verifica é de supor-se que razões de qualquer outra ordem ditam a campanha de fixação de colonos em regiões onde as condições, de uma maneira geral, não sendo adversas, são contudo difíceis a uma rápida ambientação, não correspondendo, portanto, a uma eficácia de ação tão vital para enriquecimento do agregado sem que antes haja interferência de processos de esclarecimento quanto a terras, clima e características de estações em relação a espécies de sementeira, isto no caso de fixação de populações europeias em função de ruralatos.

Acontecendo, como se pode verificar, que a mão-de-obra que chega não possui capacidade para preencher as importantes lacunas de especialização o resultado é uma concorrência irrefreável aos empregos do Estado nos meios urbanos, pelo que os projetos de fixação de colonos se faz[em] em cidades já feitas, criando então o problema de uma oferta que não encontra reflexo numa procura e causa inevitável crise de desemprego com difícil solução.

É evidente que se a mão-de-obra entrada em Moçambique para fins de povoamento possui a mesma preparação didática e igual insuficiência de capacidade quanto a especialização técnica do que a normal entre as populações rurais moçambicanas, o problema de povoar por meio de acolhimento de colonos não resolverá os problemas de progresso mas tão-somente os de aumento de população com o intuito de tornar menos desequilibradas as diferenças numéricas dos diversos grupos que compõem a população dos territórios.

Há nesta campanha de povoamento a necessidade de trazer para o Ultramar, mais do que gente para experiências de colonatos, uma mão-de-obra especializada. E carrilar para aqui o maior número de indivíduos aptos a constituir um escol que não venha pesar mais do que já pesam os infinitos fracassos para que se não tem suficiente coragem de olhar de frente sem que se julgue fraqueza sempre que se tenha de emendar a mão, reconhecendo o erro.

Mais importante do que focos de colonos é a campanha do ensino a todos os sectores sociais, com primazia para o combate ao quase total analfabetismo das populações nativas, problema que recentemente mereceu das instâncias oficiais uma espécie de medidas tendentes à eliminação da elevada taxa de analfabetos existente em Moçambique.

Quanto aos soldados, deverão eles ser transformados em civis quando possam exercer atividade de carácter socialmente útil e não feito[s] simples colonos de enxada na mão, como parece ser tendência achar que só assim, de arado e enxada, é que se deve repovoar o Ultramar.

Sem técnicos não há progresso. Mas sem indústria não são necessários técnicos.

O problema está aí.

 

J.C.

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20. 01 de fevereiro de 1963, p. 02

 

“SMOKING” E ESTUDANTES

 

Com o propósito de anunciar um baile que é já tradição nos meios escolares tem vindo a público uma série de coisas com que não é possível concordar-se dentro de uma compreensão, ou antes, apenas como simples reação de bom senso.

Referimo-nos ao “Baile do Finalista”, que este ano pretende marcar posição fora do vulgar e ser acontecimento de tomo por intermédio de convidados que vistam traje de cerimónia, isto é: “smoking”.

Não sabemos em que é que a comissão promotora de um baile de finalista se baseia para ter como facto primordial de decência um “smoking”. A verdade é que tal imposição constitui uma falta de consideração para com aqueles alunos que, sendo uma maioria, não podem arcar com as despesas inerentes a um tal aparato de vestuário. Errou completamente a comissão ao decretar tal obrigatoriedade e deu um triste exemplo de camaradagem ao esquecer-se que um grande número de condiscípulos não tem posses para comprar o tal “smoking” e os respetivos complementos: sapatos de verniz, laço, camisa de peitilho, peúgas pretas. Todos estes complementos são peças de uso pouco normal, pelo que constituem objetos de luxo.

Chegados ao fator luxo a presidir a um acontecimento que deveria primar pela simplicidade fica-se a duvidar do critério que levou a comissão organizadora a enveredar pelo caminho do “snobismo” quase ofensivo na medida em que cria uma compartimentação entre a massa estudantil. Estabelecer escalões não é bonito.

É fácil presumir o que sentirão os pais perante a imposição que sobre os filhos pesa de não se apresentarem conforme ficou estabelecido pelos membros que formam a comissão organizadora do tal baile do finalista. Muitos farão um sacrifício financeiro para não exporem os seus filhos a uma situação de pretensa inferioridade em relação aos demais e outros limitar-se-ão a maldizer o momento em que tal determinação lhes faz pensar como é precária a situação de um pai que não pode satisfazer um desejo dos filhos porque o vencimento mal dá para comer, vestir, calçar, pagar as propinas, comprar livros, cadernos, etc.

Psicologicamente, este facto a que temos vindo a dedicar a nossa modesta atenção representa um problema. E esse problema tem delicadezas que os tais membros da comissão não julgaram dever atender: as inibições de que serão vítimas todos os alunos que, por direito, devem comparticipar num baile que lhes é dedicado e a que não poderão assistir por não terem o exigido “smoking”, coisa que está a ser posta de parte em lugares cuja tradição tinha como fundamental o uso de trajes de rigor. Sabe-se como mesmo no Scala de Milão foi abolido o fato de cerimónia, justamente por ter sido considerado o nível económico de uma parte da população, o que levava tais manifestações de alta cultura musical a serem privilégio de uma classe de que não fazia parte o povo.

Condenamos, pois, abertamente que para o Baile do Finalista se tenha posto essa condição aos convivas, porque é uma forma pouco simpática de fazer com que muitos alunos lá não vão por razões fáceis de prever e que são absolutamente legítimas.

Todo este cuidado e os escrúpulos dos estudantes da comissão organizadora do Baile do Finalista, antes deveriam incidir sobre outros aspetos mais úteis e de fins mais elevados, que não fossem os trajes de alta cerimónia.

Muito gostaríamos de ver em acontecimento que reúne a massa estudantil manifestações de caráter cultural que dessem a medida do nível intelectual da juventude escolar de Moçambique. Dentre essas manifestações estariam interpretações dos poetas mais representativos da língua portuguesa, palestras sobre história, literatura, artes plásticas e temas de ordem geral.

Que os estudantes finalistas encontrem para a comemoração do seu último dia de trabalhos escolares plena satisfação em vestir um “smoking” e dançar um “twist”, é coisa que não abona lá muito as ambições espirituais do estudante moçambicano da capital.

E depois disto, só nos resta apelar para um mínimo de modéstia e menos “snobismo” por parte dos que pretendem fazer do Baile do Finalista um acontecimento mundano reservado a meia dúzia de privilegiados. Lembrem-se dos estudantes pobres e basta de compartimentos, senhores estudantes. Peçam decência, mas não exijam pretensiosismos nem sublimem o poder de compra de uns menosprezando a carência dos demais.

 

J.C.

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21. 09 de fevereiro de 1963, p. 02

 

 

BRASIL – ÁFRICA

 

Quando no momento mais intensamente importante da história de África, nações como os Estados Unidos da América, Alemanha Ocidental, Inglaterra e outros estados encontram nos seus programas políticos razões suficientes para enviar embaixadores itinerantes à maior parte dos países africanos, disputando a primazia nos auxílios técnicos a distribuir, uma nação aparece idealmente talhada para assumir um lugar privilegiado na competição africana: o Brasil.

Compete ao Brasil considerar a sua própria importância em relação ao mundo de hoje e corresponder às exigências históricas de uma África em plena fermentação. Para tal missão se acha o Brasil, mais que nenhum outro país, naturalmente fadado para uma política dinâmica em função das problemáticas em ebulição tanto nos países de recente concessão de independência como nos outros, à parte a República da África do Sul, esse espinho na consciência da civilização ocidental.

E se a política de alguns países da Europa e dos Estados Unidos tem como da sua conta interferir abertamente nos acontecimentos africanos, quase se torna falta imperdoável a apatia brasileira. E tão importante é a noção da responsabilidade moral do Brasil nas coordenadas africanas que o seu Ministro dos Estrangeiros precisou justificar-se perante a opinião pública internacional quando o delegado brasileiro, em assembleia geral das Nações Unidas, com uma abstenção votou a favor da República da África do Sul na moção que não só condenava mas preconizava a aplicação de sanções contra esse país pela política de “apartheid”.

Disse-se acima “votou a favor” porque outra não pode ser a interpretação num caso em que a posição do Brasil terá de ser sempre clara, objetiva, concreta e jamais ambígua e titubeante.

Quando a delegação brasileira na assembleia geral das Nações Unidas se absteve de tomar uma posição quanto ao problema do “apartheid” admitiu o princípio de respeito pelas leis de um estado membro, até quando essas leis sejam um atentado à Carta dos Direitos do Homem, ratificada pela Brasil. A abstenção brasileira foi um soco violento na face dos que não podem deixar de considerar a pátria de Castro Alves o país campeão da igualdade humana sem preconceitos de cor, porque abster-se é consentir, aceitar, admitir, contemporizar. Foi uma tomada de posição dúbia e não coerente com as tradições do Brasil, precisamente numa altura em que à volta da nação atlântica as circunstâncias se reúnem para uma ação favorável junto às nações africanas de jovem estatuto político.

Nenhum argumento justifica a abstenção do Brasil. E se é possível alegar-se como legítimo interferir abertamente nos acontecimentos afri[canos] que [sic] o “apartheid” é uma questão interna, também o antissemitismo nazi era um problema interno e no entanto ainda hoje estão a ser levados a julgamento nazistas acusados de crimes contra a humanidade.

Se ao Brasil se reconhece um valiosíssimo número de predicados para orientar um colóquio de entendimento com os países africanos que o faça e já. Mas não assuma atitudes de equilibrista, abstendo-se quando deve dizer abertamente sim ou não.

Essa espécie de diplomacia servirá a outros que não ao Brasil, país que nós consideramos irmão por todo um mundo de afinidades.

 

J.C.

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22. 11 de fevereiro de 1963, p. 02

 

ALA DE BENEFICÊNCIA

 

Há muito que o Homem justificadamente se considera a ele mesmo um animal superior e perde-se na memória dos tempos o seu aprendizado de atos de solidariedade para o seu semelhante. Há muito que o Homem tem noção do Bem e do Mal.

Esses atos de solidariedade têm o valor de aferição do sentimento de cada um em relação ao próximo. E certamente que se o homem exerce a beneficência como um dever é porque nele encontra força moral para ser generoso. É a antítese do Egoísmo.

A distribuição do Bem pelo homem ao incidir em grupos passou a designar-se por assistência social libertando aquele que era alvo de caridade daquilo que se chama Esmola. Esse ato de dar e receber foi reabilitado pela assistência social e passou a ser ato de beneficência. Esmola e beneficência tiveram a partir de então alcances diferentes. E, assim, à medida que as sociedades foram evoluindo socialmente procuraram os seus membros ativamente substituir a mísera esmola.

Então se criaram as instituições de beneficência.

Mas porque uma instituição de beneficência possui significado moral separado o ato de simples oferenda ou atitude de pessoa singular até porque quando tal resulte de um caso de filantropia tem a virtude de tornar-se monumento social e por isso mesmo mais valioso ainda.

Sendo um organismo criado para uma função de beneficência a velhice não é um caso típico de esmola ao próximo mas sim uma obra de assistência social, não encontramos justificação moral para assentimento e muito menos aplauso do que pela boca do presidente de uma instituição de beneficência local, a Associação dos Velhos Colonos, se tornou do domínio público: uma ala destinada aos velhos nativos de Moçambique.

O desdobramento da Mansão dos Velhos Colonos com a intenção de atender ao mesmo fim de alcance benemerente reservando-o a mais um setor da população, sugere extensões emocionais diferentes perante um mesmo facto: a assistência social.

Seria preferível, portanto, que a Associação dos Velhos Colonos se conservasse coerente consigo própria como instituição de beneficência acolhendo na sua Mansão unicamente aqueles indivíduos que pela sua permanência na Província de Moçambique tenham direito a ser chamados velhos colonos e não tendo a preocupação de lhe imprimir uma fisionomia birracial.

E porque para os nativos moçambicanos na velhice já o Governo previdentemente reservou uma instituição que é o Asilo de Santo António na Malhangalene, o que prova o interesse já demonstrado, pelos Negócios Indígenas ao tempo, em dotar Lourenço Marques com um estabelecimento que cumpre a missão de dar albergue aos negros sem lar, sob o conceito de assistência social e não como esmola, talvez não seja aconselhável retirar ao Governo qualquer parcela da vontade que evidenciou desde sempre em criar organismos próprios para a população nativa, o que deve merecer de todos a máxima compreensão para a missão colonizadora e civilizadora que com tal benesse resolveu oferecer tão magnânima quão desinteressadamente em prol de uma velhice que, à falta de amparo familiar e pensões de reforma assim recebe uma muito feliz compensação ao ter um asilo que não é anexo independente de uma obra de assistência social.     

 

 J.C.

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23. 15 de fevereiro de 1963, p. 02

 

GENTE DOS BECOS DE CANIÇO

 

Quando A Tribuna iniciou uma verdadeira campanha sobre o problema social, sanitário e urbanístico representado pela cidade do caniço parecerá a muita gente que nada ficou por dizer e por debater quanto ao assunto. Mas disso nos devemos penitenciar nós que também metemos a nossa colherada no colóquio que se travou e de que participaram todos os de A Tribuna e grande número de moradores dos subúrbios.

Vamos falar com toda a franqueza. Não se disse tudo. Houve pelo menos um pormenor que hoje trago aqui à consideração de todos porque ele constitui um caso típico da verdade incompleta.

Essa verdade é simplesmente esta: Os suburbanos de Lourenço Marques já não são apenas os nativos. A realidade social suburbana estende hoje a sua órbita por gente de várias origens. O drama suburbano não é exclusivo dos nativos. Nas barracas de caniço, matope e tetos de chapas de zinco um povo de diversas raças vegeta e a golpes malabarísticos de sacrifício e paciência vai sobrevivendo dia após dia, mês e ano após ano.

Nessas cidades de paredes de caniço há famílias de brancos que vivem o mesmo drama da insuficiência. Há indo-portugueses. Há chineses. E há uma enorme percentagem de mestiços.

O problema tem de ser encarado nessa base mais lata. Por isso mesmo é que a sua importância ganha outra dimensão. Já não se trata de um exclusivo do nativo estar mal instalado, sofrer os efeitos da falta de água canalizada em casas de quarto e sala para mais de seis pessoas, água num barril ao centro do quintal, cozinha ao ar livre e uma espécie de dependência para extremas necessidades com um serviço de autoclismo funcionando somente à noite.

A agudeza do problema não se torna maior no sentido humano. Torna-se mais grave o facto porque dele se depreende que um certo condicionamento económico alastrou para além de um campo de ação já tradicional. Esta verdade implica muitos considerandos. É preciso pensar com muita sensatez este aspeto contundente do problema da cidade do caniço. Não pensar nele ou fingir que o mesmo não existe por enquanto é deixar expandir um mal social extremamente delicado.

Uma vez que brancos, negros, mestiços e asiáticos se encontram frente a um inimigo comum, é porque o mais baixo escalão económico duma população já não escolhe este e favorece aquele. É claro que a maioria ainda é dos negros e mestiços mas isso só quer dizer que sendo eles habitantes de origem a eles cabe o maior número.

A partir desta verificação se podia acabar de uma vez por todas com estabelecimentos que pretendam exercer beneficência compartimentando os pensionistas. Nos subúrbios a população vive lado a lado e nos caminhos de areia veem-se já miúdos pobres indiferentemente da cor da pele ou da raça, jogando as mesmíssimas brincadeiras. Não será isso uma preciosa indicação para uma obra assistencial não racial?

Se a índole dos portugueses que vão residir para os subúrbios lhes permite uma harmoniosa vizinhança com os habitantes negros, mestiços e asiáticos, está realizado o tipo de experiência para uma obra mais vasta e desassombrada no sentido de diluir diferenças pouco lógicas e muito desaconselháveis.

Porque se alguém pretendesse criar em Moçambique uma obra de assistência só para velhos mestiços necessitados a coisa estaria completamente errada. Seria falsear o significado de altruísmo para com o semelhante. Nem só para mestiços nem só para qualquer outra das raças já citadas. Se a pobreza não escolhe, a mão que dá também não deve escolher.

Faria sentido por exemplo que habitantes da mesma zona suburbana, vizinhos até, em caso de doença e internamento ficassem em enfermarias de escalões diferentes? Com certeza que não. Todos concordarão em que é preciso moralizar os costumes a partir das lições que o povo humilde sabe dar.

E era isto que havia a dizer quanto aos habitantes da cidade do caniço e que as fotografias da campanha que se promoveu não mostram, revelando apenas uma das faces do problema que, afinal, já é de todos.  

 J.C.

 

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24. 05 de abril de 1963, p. 02

 

MUDANÇA DE TOPÓNIMOS

 

Ao verificar-se a adoção de novos topónimos para localidades de Moçambique, fica-se com a impressão de que existe uma certa preocupação em obter aqui uma como que compensação sentimental para inibições saudosistas. Tal facto tem sido motivo de especulação imaginativa nem sempre de acordo com a lógica da tradição.

Sabido que os topónimos correspondem quase sempre a criações de imaginação popular consagradas pelo uso, não é de muito acerto nem critério muito airoso a transplantação de nomes respeitantes a dado lugar para um sítio completamente diferente. Assim sendo, não há a menor dúvida de que é incoerente tal prática porque ela não resulta de escolha universal nem de consagração de uma característica peculiar dos próprios habitantes.

A mudança de topónimos de tradição patriarcal por outros completamente dissociados do ambiente local e da sua gente pode ser documentado em Moçambique com exemplos que ilustram com fidelidade o problema. Nalguns casos a troca revela apenas uma exacerbada nostalgia pelos lugares de nascença e noutros atinge uma irreverente falta de sentido das proporções. Seja como for, à coisa preside sempre um discutível critério muito pessoal.

Vejamos ao acaso o nome “Madragoa” aplicado a uma localidade moçambicana antes bem conhecida por Chiguidela, no distrito de Gaza. Acontece que Madragoa é vocábulo que tão logo transferido para vila de África não tem qualquer espécie de ligação com a gente da área ou sequer com algum aspeto típico da terra. O nome Madragoa, que corresponde literalmente a mulher de má nota ou de comportamento moral repreensível na tradição lisboeta, em Moçambique não tem cabimento porque lhe falta o apoio histórico. E se lá se explica o emprego já familiar de vocábulo de tanta feiura etimológica, já o mesmo não acontece onde a mitologia popular nele não encontra razão próxima ou remota para o aceitar como hábito ou desejá-lo como lei.

Trocando Chiguidela por Madragoa substituiu-se apenas um nome. O lugar ficou o mesmo e a troca não teve outro efeito que oficializar em Moçambique um nome de sabor popular retintamente alfacinha.

Este é um exemplo frisante do critério que tem levado à substituição de nomes de terras sem curar de saber de sentimentalismos de herança para prevalecerem saudosismos do berço distante. Ora, toda a comunidade tem os seus mitos e os seus hábitos. Respeitar esses mitos e esses hábitos foi geralmente norma dos portugueses em África ou na Ásia e ainda nas Américas, onde os habitantes conservam com muita convicção ainda grande parte dos seus usos ancestrais, a sua língua nativa, o seu folclore.

Transformar uma aldeia do interior de Moçambique em Aldeia de Pegões, Aldeia de Folgares ou Aldeia de S. José de Ribamar faz com que tais topónimos percam o sabor típico que se ajusta ao lugar metropolitano ideal.

A mudança de nomes de raiz local por outros de inspiração não local ofende um processo legítimo de aportuguesamento de gentílicos, não permitindo em Moçambique o fenómeno que em Portugal determinou o aportuguesamento de arabismos como Algarve, Aljustrel, Alfama e outros onomásticos, além de muitíssimos casos de lusitanização de galicismos, helenismos e anglicismos.

A Língua não é um fenómeno estático. Pelo contrário. Funde-se, refunde-se e revitaliza-se ao contacto com outras línguas.

Ao dizer-se hoje em bom português almirante, algarismo ou alfaiate não vem à lembrança que tais palavras sejam de origem árabe e que foram aportuguesadas. Ao dizer-se almofada, aldrabão, alface, etc., proferem-se palavras árabes que já são legítimo vocabulário com que a Língua Portuguesa foi enriquecida por aglutinação.

Porque se não faz o mesmo com os vocábulos nativos de Moçambique?

 

J.C.

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25. 21 de abril de 1963, p. 02

 

RESPOSTA A UM JORNALISTA BEIRENSE

 

Deram-me a ler há dias uma publicação da cidade da Beira em que é visado o então chefe de Redação de A Tribuna Gouvêa Lemos por este se haver insurgido contra o caráter racial de certas expressões ao designar pessoas de cor e porque A Tribuna noticiara a 4 colunas a afirmação de que Moise Tshombé havia transferido para um banco suíço 100.000 contos, dinheiro esse do povo do Catanga.

E surge então o seguinte esclarecimento:

Quando, ingenuamente, alguém se atira à Tribuna por causa de um título desfavorável ao político catanguês nem sequer se apercebeu esse alguém do seguinte: a afirmativa contida no referido título não era criação de A Tribuna mas parte do texto do telegrama enviado pela agência noticiosa. A Tribuna, ou qualquer outro jornal não tem que comprovar a autenticidade das notícias difundidas pelas agências de informação.

Também o facto de uma tal notícia a alguém não merecer o devido crédito não implica que o jornal houvesse de responsabilizar-se pela sua não veracidade; assim como se ela era, ou ainda é, falsa, não houve desmentido à mesma nem os bancos da Suíça a mandaram retificar ou corrigir até à data.

Agora sigamos na análise do desabafo com que tentou visar o jornalista Gouvêa Lemos quanto à legitimidade do uso de termos de intenção racialmente agressiva como monhé, caneco, mulato, cafre, etc., que o dito jornalista beirense acaloradamente advoga.

Primeiro, em relação ao mesmo jornalista é necessário esclarecer que a sua posição se filia num declarado preconceito racial, e, portanto, age por coerência com ele mesmo como racista que é. Racista porquê? Porque disso isto: “É que eu, cromossomaticamente, posso ser racista e não o sou”. (Notícias da Beira, de 16 de agosto de 1961).

Ora, se uma pessoa entende que pode ser racista é porque se julga detentora de “virtudes” especiais que lhe possam à nascença atribuir poderes psicofisiológicos superiores, e, mesmo que não queira fazer uso deles[,] confessa o preconceito de superioridade racial pelo genes, o que é peregrina asneira cientificamente e grandessíssimo logro jornalisticamente, porquanto os corpúsculos de um núcleo são transmissores de caracteres de hereditariedade fisiológica mas, note-se bem, não transmitem virtudes morais ou intelectuais para que homem algum entenda considerar-se “melhor” racialmente do que outro ser humano com caracteres físicos diferentes.

Afirmar publicamente que se possuem excelsos dons cromossomáticos para se ser racista por direito é confessar o orgulho racial do ariano deificado por conceções nazistas. Mas… como é que é possível achar-se alguém apetrechado com heranças de inteligência superior em relação a um outro grupo de hereditariedade genética dessemelhante fisicamente? Por mera presunção de posse de sinais fisiológicos que Gobineau e Hitler preconizaram como fatores de privilégio racial? E se o homem for, antropologicamente, um padrão muitíssimo pronunciado de gritantes cruzamentos, desde o achatado da região nasal ao prognatismo? Ainda se julgará na categoria dos caucásicos?

Só quem jamais experimentou ler o que a ciência conclui sobre o fenómeno genético, a hereditariedade, a herança cultural, a pureza racial e a miscigenação e o homem pode falar sem enfrentar um complexo de pudor assaz suficiente para o impedir de exibir a sua incultura e a sua vaidade racial que não têm razão de ser. Assim, faça cada um sumário exame à própria aparência somática, confrontando-a com a de pessoas tidas como do grupo caucásico ou como correntemente se diz: europeu.

Numa sã autocrítica muitos indivíduos veriam desse modo a diferença e a distância a que eles próprios estão de um tipo humano pretensamente puro, coisa que não existe na face da terra, até porque a cor da pele é o que menos conta na classificação do grupo racial porque entre “brancos” há mais de uma dúzia de gradações e entre os “negros” variam imenso os tons de pele.

As observações, conclusões, noções, conceções, variações e objeções do referido jornalista acerca dos designativos raciais valem pelo que revelam: um indivíduo enredado na teia das próprias inibições e que ocasionalmente fixado em África nela pretende encontrar solução airosa para a sua tragédia de mediania social arvorando a flâmula de uma opinião que nada mais é do que atrevida irreverência de incultura apoiada em grande vaidade, muito fascismo e alguma instrução.

São sempre de lastimar as vítimas da ciência infusa. Os que não sabem que o homem precisou desde sempre de sinais de poder e para isso atribuiu a certos objetos, gestos e palavras um dom sobrenatural. Os que não sabem que todas as civilizações criaram os seus símbolos, os seus mitos, os seus tabus e as suas sublimações. Que de grupo para grupo esses mitos, tabus, conceitos e sublimações serviram para definir, exaltar e particularizar a vida da comunidade. Eram os símbolos de diferenciação a que podemos chamar marcas de cultura e que possuíam o valor de coisas ou mensagens boas ou más, sagradas ou blasfemas.

É sempre de não desejar que alguém se empenhe em julgar problemas de ordem psicológica revelando a sua profunda ignorância quanto à influência dos fenómenos ambientais nas sociedades humanas. A teimosia de não querer ver para além dos rudimentos de uma casquinha de cultura a verdade das coisas no seu valor de transcendência universalmente humana é sempre lamentável.

E quando há pessoas que se entrincheiram em dogmas ocos, fazendo galas de uma altanaria categórica e se comprazem em negar a carga injuriosa que certas palavras contêm, não só porque a matriz desses vocábulos pertence a uma dada conjuntura de um encontro de culturas opostas mas porque são distintivos de preconceitos, é porque não podem admitir de bom grado que as despojem dos únicos símbolos de superioridade que acham ainda poder publicamente manter por mais tempo: o jogo discricionário das palavras.

Mas os argumentos dos senhores que assim pensam e os manejam têm fácil explicação. Basta enquadrar essas pessoas no tempo e no espaço em que se movimentam para se terem os indivíduos apavorados pela possibilidade de lhes serem retiradas as varinhas mágicas do poder da ofensa ou o uso a bel-prazer da benevolência desumilde.

Depois deste esclarecimento fica explicada a posição de certos indivíduos em relação à preferência pelas qualificações raciais para identificar pessoas que hajam sofrido acidentes ou participado de acontecimentos públicos: o mulato fulano de tal foi atropelado, o negro sicrano atropelou e o monhé beltrano fez…

Argumenta-se com o uso de um mesmo tipo de expressões no Brasil. E argumentar-se-ia muito bem se não fosse esta coisa fundamental: é que tais expressões na boca ou na pena de brasileiros não correspondem às mesmas realidades noutro lado prevalecentes nem são exclusivas de brancos para os não brancos mas tratamentos com que cada um se referencia, e até se amima outrem, como é o caso do negro de pele que chama à mulher clara ou escura “minha nêga”.

Neste caso o Brasil não pode ser paradigma de usos idiomáticos em relação a Moçambique porquanto a linguística ali seguiu a evolução que o fenómeno político socialmente lhe imprimiu.

De certeza que se não encontra em Moçambique um africano consciente gabando-se de ser “cafre” ou “narro”; indiano ufanando-se de ser “monhé” e mestiço proclamando euforicamente ser “mulato”, assim como se não depara no Brasil verdadeiro brasileiro que se gabe e publicamente se exalte de ser branco ou quem diga o disparate de cromossomaticamente poder ser racista. Mas, em contrapartida, facilmente se encontra o brasileiro chamar-se a ele mesmo de negro, índio, caboclo, escurinho, etc., num fenómeno interessante e curioso de reabilitação de termos noutra parte ainda possuindo conteúdo afrontosamente acutilante.

Assim, a certos indivíduos não repugnam, e até fazem questão em manter, empregar expressões de qualificação do indivíduo pelos sinais raciais, conquanto se não lhes ponha o problema no sentido de uma reação inversa, se para serem qualificados fosse necessário identificá-los como “aquele bípede” ou pelo paralelismo bioantropológico com certos espécimes que as feições de alguns imediatamente nos sugerem, assim como esquecem, na mesma linha de raciocínio, se seria elegante, delicado e de bom senso fazer-se uma notícia e dizer-se: o motorista branco, fulano tal, atropelou o transeunte João Cossa. Haveria ou não haveria lugar para admitir que “branco” precedendo o nome do culpado continha intenção tendenciosa? E estaria bem? Nós respondemos: Não!

E se numa competição desportiva se dissesse: os primeiros a cortar a meta foram Zandamela, Machava e Satar, chegando em último lugar o branco António dos Reis, há ou não há intenção pejorativa? E estaria bem? Nós voltamos a responder: Não!

Frisemos o seguinte: os vocábulos, os gestos, os objetos e mesmo certos sons são instrumentos de agressão, ternura, desprezo ou respeito, conforme a área de cultura ou o código de compostura social, moral e ideológica dos indivíduos.

Por exemplo:

Para pessoas de uma determinada cultura, o polegar enfiado entre o indicador e o médio tem valor de exorcismo: é uma figa e preserva de contágios e malefícios. Há quem o use quando cruza com um albino.

Para pessoas de área cultural diferente, esse gesto não significa nada nem o albino é tabu.

E ainda há os assobios, os trajes e o tom de voz que podem ter diferentes significados: de paz, ofensa, admiração, provocação, pudor ou impudor, conforme regras de costumes herdados em cada zona.

No código de composturas de um muçulmano, tirar o chapéu a outra pessoa não é prova de respeito. Para um ocidental, não tirar o chapéu é falta de educação.

E pronto, isto tudo serviu para argumentar com certas pessoas que em coisas de psicologia e cultura social deverão observar o silêncio que as coisas sérias devem merecer de quem imparcialmente as não pode tratar porque as não quer ver sob uma luz que não seja a do seu conceito de: “É que eu, cromossomaticamente, posso ser racista”… profissão de fé numa ordem condenável legalizada na África do Sul com o designativo de “apartheid”, país que até deve aceitar de braços abertos os que doutrinas suas proclamam como válidas através de afirmações daquele teor, como em Moçambique dever-se-ão considerar indesejáveis os que exaltam excelências cromossomáticas dentro da sua jurisdição territorial em aberto antagonismo com o que a Constituição declara como lei e publicamente o Governo desmente sempre que tal outros lhe assacam.

 

J. CRAVEIRINHA

 

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26. 21 de maio de 1963, p. 01

 

 

Hamina “faz hara-quiri” nos templos da Rua Arjo [7]

 

Ah! Ah! Ah! era o grito de guerra da mulher de negros olhos brilhantes como dois gatos bravos sempre assanhados contra o fumo de cigarro e os sons raivosos do “twist” e do “kwela”.

Toda a gente sabia que Hamina era rainha, gato bravo, dançarina de primeira. E quando Hamina volteava no meio da sala os marinheiros abriam os olhos escandinavos e estendiam as mãos à procura da cintura de caniço. E a cintura fugia, vinha, esquivava-se, entregava-se, retraía-se.

Quem é que dançava melhor que Hamina? Quem é que era capaz de rir mais alto do que Hamina? Quem é que era capaz de fazer dois metros de marinheiro loiro ficarem um passarinho xindjinquerintana com nembo nas asas e o bico mergulhado no suco da flor encarnada?

Hamina, come year – Hamina, anda cá – Hamina, buia aleno, Hamina, venez ici –  e uma gargalhada feria os tímpanos da noite: – Ah! Ah! Ah! e os olhos de gato bravo de Hamina relampejavam no algodão espesso dos cigarros de todas as marcas.

Quem plantou aquele tabaco? Quem regou aquele tabaco? Quem apanhou aquele tabaco? Ninguém. A marca é “Lucky Stike”, Nilos, L. M., Havano, etc. Vamos fumar os cigarros e lançar o fumo pelo nariz e pela boca. Acende-se o cigarro e vai-se fumando até acabar. A beata deita-se fora. A cinza também à medida que vai chupando a ponta de cortiça.

Quem fez Hamina? Quem ensinou Hamina? Quem mandou Hamina? Quem chupou Hamina?

*

Daícoooo… eih, Daícoooo! – vai uma samba, ó pá. E Daíco não responde com a boca. A boca de Daíco está na ponta dos dedos. Cinco, dez, trinta mil dedos e quinhentos milhões de cordas num oceano de sumo de caju bem fermentado no quintal da cocuana Leta, avó de Zulmira que teve filho de Joaquim e trabalha no Penguin.

E Daíco mexe os dedos. Cada movimento é uma côdea de pão. Cem movimentos um prato de arroz. Quinhentos movimentos uma coisa chamada bife com outras coisas chamadas batatas. Duzentos e cinquenta mil movimentos é o teto de zinco e as quatro paredes onde pendurar o casaco, as calças e a boina das manhãs de cacimba. Daíco todos os dias morre um bocadinho ali, vendo a paisagem tornar-se mais bela como um rosto de mulher sem pintura a estender-lhe a boca para um beijo. Cabelo de Daíco ficou branco a pensar naquele beijo. Ainda há de vir? A tal mulher onde está? Nasceu onde? Quem é que viu a ela andar, rir, chorar e dar beijos?

“Daícooo…eih, Daícooo!!! – vai uma samba, ó pá?!

*

Ontem, Smith foi à Rua Araújo. Entrou. Atirou a madeixa loira para trás e Hamina não apareceu. Puxou o pacote de cigarros. Hamina nada. Smith jogou a última cartada: meteu a mão no bolso e tirou um punhado de dólares. Veio Joana. Veio Esperança. Veio Felicidade. Mas Hamina, isso. Hamina ficou escondida.

Daíco começou a fazer côdeas de pão e bife com batatas e rendas da casa de teto de zinco, número cinco a contar do cajueiro. Um barril de uputo encheu as cabeças no cabaré. Foi “twist”, foi samba, foi “rock”, foi “kwela”.

Hamina está estendida na cama. Um pulmão tem “rock n’roll” lá dentro.

 

JOSÉ CRAVEIRINHA

(Excerto de um conto)

 

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27. 28 de maio de 1963, p. 02

 

MANIA DE EXIGÊNCIAS NOS CONCURSOS

 

É já frequente a mania das exigências para provimento de lugares do funcionalismo público. E se algumas exigências têm razão de ser, outras há que se não justificam e nem sequer se devem admitir logicamente.

Não é missão de certas repartições criar dificuldades escusadas aos candidatos a lugares a concurso nem moralmente perfilhável o número de requisitos que se exigem, muitas vezes com atropelo de prerrogativas de outros Serviços ou evidente desdobramento de competências, o que facilmente se poderia evitar para bem de todos e facilidade de concursos, concorrentes e Serviços.

Não se compreende, por exemplo, que a Direção dos Serviços de Instrução publique no Boletim Oficial um anúncio abrindo concurso documental e de provas escritas e práticas para provimento de um lugar de condutor de automóveis de 1.ª classe dos mesmos Serviços, exigindo para além da sua competência.

No referido anúncio especifica-se que os candidatos pedirão a sua admissão ao concurso em requerimento dirigido ao sr. Governador-Geral e a que juntarão entre outros o seguinte documento: carta de condução de viaturas ligeiras e pesadas. Até aqui a coisa está certa.

Mas a seguir entra-se na apreciação do programa das provas e verifica-se com espanto que na prova escrita se exige ao concorrente na alínea c) qual o “Funcionamento de travões e forma de resolver a deficiência, uma vez verificada”.

Ora, este requisito é verdadeiramente inoportuno. Que interessa aos Serviços de Instrução que um indivíduo de posse da carta de condução obtida por exame no serviço competente haja de explicar aos Serviços de Instrução como é que funcionam os travões e como travar a viatura no caso de os mesmos não obedecerem ao motorista. Isto é ou não é especular com programas de concursos e provas exigidas? E no mesmo anúncio figuram depois como provas práticas a submeter os candidatos o seguinte: condução de viaturas ligeiras e pesadas; conhecimentos elementares do Código da Estrada e descrição das principais partes de motor a gasolina e seu funcionamento. Quer dizer: o possuidor de uma carta de condução para obter o lugar tem de fazer um novo exame de motorista. A apresentação da licença de condução passada pelo Conselho Superior de Viação, que tem como examinador um funcionário com a categoria de engenheiro, é insuficiente e não faz fé.

Isto tudo é tanto mais de estranhar quanto o júri é constituído pelo chefe da Repartição dos Cultos e Instituições Culturais dos Serviços de Instrução, o mestre geral das oficinas do Almoxarifado e um serralheiro mecânico.

Estudando atentamente um caso desta natureza não será de chegar à conclusão de que há um autêntico exagero nas condições de certos concursos? Não é para se dizer que é “meter foice em seara alheia”?

Não seria possível acabar com provas a mais nos concursos e admitir consoante outras normas de preferência quando exista mais do que um concorrente, condições de preferência essas não estranhas à lei quando se verifique igualdade de condições entre os candidatos? Cremos que sim. E muito respeitosamente recomendámo-lo, mesmo porque não se torna condição para prover uma vaga de médico que um médico faça prova escrita e prática de como se trata o fígado de um paciente ou para um lugar de engenheiro a prova escrita e prática de uma obra de engenharia.

É ou não é assim?

 

J.C.

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28. 02 de junho de 1963, p. 02

 

Jornalistas Patrões

 

Chegam-nos ao conhecimento extraordinários casos de verdadeiro desprezo pelos direitos do jornalista praticados por quem, antes de qualquer outra entidade, deveria consagrar todo o respeito devido ao jornalista. Referimo-nos ao dono do jornal ou quem suas vezes faz em todas as circunstâncias: a Direção.

O último caso de que temos conhecimento é bem recente, tão recente que ainda escrevemos sob a impressão inicial da notícia: um jornalista de há longos anos vinculado a um jornal diário desta capital a quem teriam sido aplicadas sanções de caráter disciplinar.

Não sabemos em que lei ou regulamento se inspirou a referida Direção para enquadrar as possíveis faltas cometidas pelo jornalista em questão e também em que base legal se apoiou o corpo diretivo do citado jornal para exercer justiça punitiva sobre um empregado sindicalizado. Importando bastante esse aspeto jurídico do caso determo-nos-emos porém na particularidade de entre as infrações de que se fez réu o jornalista se haver considerado como punível o facto de ele ter respondido a um inquérito dos que o nosso jornal A Tribuna tem por hábito publicar.

Cominadas as faltas, entre as quais a de ter aparecido a responder num inquérito promovido por um órgão da Imprensa local, portanto colega, pese embora a humilde categoria de A Tribuna perante o tal vetusto e conspícuo diário de Lourenço Marques, a pena infligida foi de uma multa de 1200$00.

Posta a sanção em termos de multa pecuniária ainda mais delicado se apresenta o litígio no seu aspeto de ofensa à dignidade do jornalista. Jamais caberia a alguém imaginar que uma medida disciplinar fosse moralizada a escudo e pudesse ser aplicada a um caso comezinho de liberdade pessoal pela Direção de um jornal contra um jornalista do seu próprio corpo redatorial.

Ora um jornalista é também um cidadão livre. Ele pertence a uma classe. Não ofendendo noutro órgão de Imprensa o jornal onde exerce a sua atividade é um verdadeiro abuso de poder castigar um jornalista por ter respondido a um inquérito jornalístico.

Temos em que a Direção de qualquer jornal deverá sentir extensivo a todo o seu corpo redatorial a solicitação pública a repórter ou redator seu, aceitando isso como consagração ao mérito das figuras que fazem parte do jornal, honra igual a que toda a coletividade naturalmente tem quando veja membro dela projetar para além do âmbito de ação a que oficialmente pertence. Este é o caso, por exemplo, de um artigo ou local de que se faz transcrição noutro jornal. Sabe-se como é norma não dispensar a fonte de origem, citando-a sempre com a devida vénia por tal representar sob todos os aspetos prestígio não só para o seu autor como também para o órgão que a publicou.

Ora bem: se é o próprio jornal a calcar as prerrogativas que um jornalista tem de ser um cidadão livre de exprimir ideias, como e quando se pode reabilitar esta profissão do critério dos senhores a quem apetece exercer represálias sobre um indivíduo, descontando-lhe no vencimento a quantia que muito bem entenderem; como e em que instância recorrerão os jornalistas para fazerem valer os direitos inerentes à sua classe?

Essa de impor a um jornalista uma multa em dinheiro e entre outros argumentos invocar a concessão de uma entrevista a outro jornal como falta é uma prepotência inqualificável. Uma injustiça. Um abuso.

Está por isso toda a Imprensa de Moçambique, e os jornalistas em especial, de “parabéns”.

 

J.C.

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29. 27 de julho de 1963, p. 02

 

VAMOS FALAR, SR. CAPITÃO VAZ [8]

 

“Então esses jovens países africanos, a maior parte dos quais exerce em relação à sua população branca – população que lhes proporcionou ajuda, civilização e ensino, que procurou arrancá-los da selvajaria e torná-los humanos – …”

Os tempos são muito sérios para se fazer jogo de palavras para benefício de outros. Estamos em África. Todos. E quanto tenha de acontecer ou esteja já acontecendo deverá encontrar em todos nós uma posição clara, definida e objetiva. Os que estão na África de língua portuguesa defenderão os valores da presença portuguesa, os que estão em África de língua inglesa defenderão os valores da presença inglesa e os que estão em África de língua africânder defenderão ou não a sua política de “apartheid”, mas isso já é um problema diretamente deles e não dos portugueses. Portugal, pela voz dos portugueses que estão em África, não pode advogar causas antagónicas à da sua política oficial aplicada no público convívio social.

Se o sr. capitão Vaz aparece em público a reivindicar para a sua raça o milagre de ter tornado humanos os negros, não me interessa a mim que esses negros sejam daqui ou dali: são negros. E se o sr. capitão Vaz aparece a afirmar categoricamente que a qualidade humana do negro foi concedida por generosidade de outra raça em vez de falar simplesmente em termos de civilização técnica, ensino e novos conceitos de sociedade, tenho de o admitir.

Porquê a questão posta em termos de raças superiores e raças sub-humanas? Uma mentalidade verdadeiramente portuguesa põe a questão dessa maneira?

“Nós não defendemos o «apartheid» sul-africano e por mais de uma vez o condenámos já nestas colunas. Discordamos dele especialmente nos seus aspetos de crueldade moral e intransigência, mas seria indigno – e injusto do nosso lado – se não reconhecêssemos que em parte nenhuma da África são fornecidos aos indígenas maiores cuidados e maiores facilidades no que respeita a assistência médica, habitação e instrução como dentro da República vizinha”.

O sr. capitão Manuel Vaz não defende o “apartheid” e até o considera uma “crueldade moral” e uma forma de “intransigência”. Muito Bem!

No entanto é o mesmo sr. capitão Manuel Vaz que se insurge e consagra o que em nenhum outro lugar de África – nem mesmo em Moçambique, nem mesmo em Angola – é dado usufruir pela população não branca. E acha que é “indigno e injusto” não o reconhecer.

1.º Que Assistência Médica, sr. capitão Manuel Simões Vaz? Em lugares reservados para gente de cor. Boa sob o ponto de vista médico? E o tal aspeto de “crueldade moral” já não conta?

2.º Que Habitação, sr. capitão Manuel Simões Vaz? Em lugares segregados, onde com eles não haja convivência social possível; em blocos de casas o mais afastados dos centros populacionais? E o tal aspeto de “crueldade moral” já não interessa?

3.º Que Instrução, sr. capitão Manuel Simões Vaz? À parte. Segregada. E instrução para exercer onde os conhecimentos adquiridos? Em que sítio? Em que profissão? Com que salários em relação a outros muitas vezes menos instruídos, menos cultos e menos civilizados?

E o tal aspeto de “crueldade moral” já não interessa?

“Quanto a nós, que vivemos em paz, que não temos, e antes condenamos, o «apartheid» – Nós não defendemos o «apartheid» sul-africano e por mais de uma vez o condenámos já nestas colunas”.

Estas palavras são do sr. capitão Manuel Simões Vaz e as que se seguem também são da sua autoria e responsabilidade:

• “Se o soubessem tão bem como nós, se conhecessem esta verdade, os habitantes negros, a esmagadora maioria dos habitantes negros desses recém-nascidos países que atacam a República da África do Sul para dela se apoderarem, fugiriam em massa das suas próprias terras para dentro dela se abrigarem”.

• Não sabemos que espécie de posição quer o sr. capitão Manuel Simões Vaz assumir com estas afirmações e contradições públicas. Qual “verdade”?

Contudo, são de admitir umas como lógicas e outras não aceitar como válidas, sãs ou construtivas.

Vemos mais uma vez um português confundir a posição portuguesa com a posição sul-africana em África. Duas coisas distintas. Inteiramente distintas. Completamente distintas.

Defender uma tese portuguesa argumentando a favor dos benefícios da tese sul-africana do “apartheid” é uma clara demonstração de inadaptação política ao meio ambiente e a prova concludente de que afinal há quem tenha o “apartheid” como um aliciante paraíso para os que o conheçam, como é o caso particular do sr. capitão Manuel Simões Vaz: “Se o soubessem tão bem como nós, se conhecessem esta verdade”.

De onde é que o sr. capitão Manuel Simões Vaz conhece essa verdade? De Joubert Street ou do Park Avenue, não é? Conhecê-la-á também de Town Ship, Sharpville ou Mufulo e Alexander?

Pois eu prefiro estar aqui em Moçambique mesmo sem os “benefícios” da instrução, assistência médica, ensino e habitação que o governo sul-africano muito generosamente concede à população não branca e que não há em nenhum outro lugar de África.

E sabe porquê, sr. capitão Manuel Simões Vaz? Porque não há habitação boa, assistência médica boa, ensino bom, instrução boa e outras coisas boas de lá, que paguem o sentir-me humano, acotovelar-me com toda a espécie de gente, andar com os meus filhos por toda a parte, sentar-me em qualquer lado, comer e beber no sítio que entender.

• Mas quem fez isso? Foram os ingénuos homens de fato de caqui ou fato de linho branco e chapéu de palha que andavam a pé e quando muito de burro ou carro eléctrico. Esses, como os Craveirinhas que morreram sem deixar terrenos, nem prédios, nem ações, foram os homens que se juntavam ali na Praça 7 de Março ou no Quiosque Olímpia e quando cometiam erros não era em nome das faltas dos outros, da política dos outros nem dos interesses dos outros. Erravam na pureza das suas próprias limitações.

• Vamos falar a sério. Acabar com a orgia das palavras. Determinar um rumo. Ou sim ou não. Estar em Moçambique como moçambicano ou ser de Moçambique como um sul-africano adepto das vantagens do “apartheid”.

Propaganda das leis de desenvolvimento separado em Moçambique é a consagração da discriminação racial num país cujas leis a não autorizam e os costumes das pessoas a negam e publicamente tal não praticam. É ou não é? Parece que é.

Portanto, o que não está bem é inadmissível.

Relações de vizinhança não implicam concordância de ideias nem propaganda de princípios. E não bastam indignações. Quer-se uma lógica. Uma razão. Uma coerência.

Dizer que se condena o “apartheid” e simultaneamente fazer a apologia do sistema de “apartheid” não deixa de ser uma posição dúbia em relação à verdade.

E se alguma dúvida tivesse ficado sobre o que o sr. capitão Manuel Simões Vaz pensa do “apartheid”, as suas próprias palavras nos elucidariam a todos quando escreve:

“Que digam isto ao menos, que o digam com honestidade, que acabem com as mentiras e com as mais vis e injustificadas acusações, deitando mão de uma alegação – o «apartheid» – no caso da República da África do Sul e – como essa não pode pegar por excessivamente clara a sua falsidade – …”

• Excessivamente clara a falsidade do “apartheid”, segundo o conhecido jornalista capitão Manuel Simões Vaz, embora discordando “dele especialmente nos seus aspetos de crueldade moral e intransigência”. Lemos mal ou não percebemos bem?

• Entre a crueldade moral e selvajaria como conceitos do mal não sabemos que distância medeia; mas seja ela qual for não serve o jornalismo nem a verdade quem uma exalta e outra põe de rastos; quem uma apresenta altruísta e outra em situação de gratidão.

Qual das afirmações afinal corresponde ao pensamento autêntico do sr. capitão Manuel Simões Vaz: a de que o “apartheid” é uma forma de crueldade moral ou de que aquilo é tão bom, tão belo, tão magnífico que sob ele todos desejariam abrigar-se se o conhecessem como ele capitão Manuel Vaz, jornalista?

Mas aí é que está. É que nem todos podem conhecer na África do Sul o que é bom, belo e bonito para o sr. capitão Manuel Simões Vaz.

 

(A propósito do artigo publicado no Notícias do dia 26 deste mês, sob o título “Vergonhosa Farsa”).

 

JOSÉ CRAVEIRINHA

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30. 20 de setembro de 1963, p. 02

 

CARTA PARA O NUNO: [9]

Um ex-camarada jornalista e poeta

Nuno:

Tornámo-nos amigos. E tornámo-nos amigos desde o momento em que fomos camaradas de trabalho e eu não hesitei em ficar preso a um sentimento de amizade pelo colega e chefe que tu soubeste ser sem sobreposição de um cargo pelo outro, antes ajustando-os idealmente no trato com todos nós, os da redação do jornal onde trabalhávamos: Notícias.

Esse sentimento de amizade, Nuno, era de admiração pelo tipo fixe que mostraste ser. Tão fixe que não hesitaste em assumir uma posição mais de realçar porque não te beneficiava pessoalmente, mas aos redatores e repórteres que se limitavam a cochichar o seu descontentamento, ao mesmo tempo que se agachavam na ginástica mesureira perante os maiorais da casa. Pois tu, Nuno, bateste o pé, “pintaste a manta” e “queimaste-te”. Os outros foram aumentados no vencimento e tu foste despedido. Foi nessa altura que eu fiquei teu amigo, quando os tais outros fugiam de ti para se imunizarem de qualquer possível “mau olhado”.

Pois bem! E além de jornalista és poeta. Duas coisas reunidas mas com um só conceito polivalente: o da liberdade de pensamento, de expressão e de palavra; o da Verdade, da Independência e da Coragem.

Como jornalista poderás objetar: – "Ó Craveirinha, e a barriguinha? E a família? E isto e mais aquilo?” – E eu replicar-te-ei imediatamente:  – “Nuno: Então dá o prato de sopa à família, enche a barriguinha, mas evita ser uma figura de cera, tu, um ex-tipo fixe, um teso para os patrões. Fala da paisagem, da riqueza da fauna cinegética, das maravilhosas praias para veraneio, da estatuária maconde, dos timbileiros chopes e da castanha de caju. Mas não dês em momo moçambicano”.

Como poeta não sei o que terás a dizer. Confesso que já não sei nada de ti, agora. Estou ainda sob o efeito do murro na boca do estômago que levei do teu punho fechado. E que “grande murro”, ó Nuno!

Não sei como é que tu encaras a Poesia. Mas seja como for que a entendas ela será sempre uma arte livre do homem para os homens. Todos e não alguns. E se os mais esclarecidos estudiosos de Poesia a consideram uma arte social, ela não será privilégio, ela terá de encontrar-se com o mundo, dar as mãos à condição humana, reintegrar-se na sua essencialidade lúdica.

Ora tu, Nuno, um poeta, não podes renegar o valor da Poesia como fenómeno social. Nem que desatasses a sublimar a hábil manipulação intemporal de palavras delicodoces deixarias de estar a tentar exprimir uma necessidade. Talvez a coisa se ofereça assim ou não, assim consoante as vivências, consoante a experiência que David Rousset haveria de chamar “concentracionária” na medida em que o horror e a brutalidade dos campos de concentração transformariam radicalmente o seu conceito de literatura, imprimindo à sua obra outra diretriz, outro alcance, outra dimensionalidade.

Portanto, o poeta, Nuno, vive o seu tempo. Integra-se no contexto que lhe é próprio por um peculiar caso de humanização imediata.

Tal como diria o poeta espanhol José Hierro: “O poeta é obra e artífice do seu tempo. O signo do nosso é colectivo, social. Nunca como hoje o poeta necessitou ser tão narrativo; porque os males que nos espreitam, os que nos modelam, procedem de factos”.

Não se trata, como deves admitir, de ser “maior” ou “menor” nem de estar em primeiro, segundo ou terceiro lugar numa tabela de valores pressupostamente infalível. Trata-se de ser ou não ser poeta em relação à sua poética e não em relação à poética de outros. Porque uma obra de poesia não é um modelo extraído de catálogo. É uma obra em si e para ser analisada de ela para ela mesma e pelo que ela possa dever como manifestação de liberdade do homem-poeta, do homem-humano em suma.

E é isso, Nuno, o que tu não deverias jamais ter esquecido. Que o dom da palavra não se esbanja nem se escraviza dentro de uma camisa-padrão. Que o dom da palavra exerce-se num sentido de coerência e de lealdade para com o mundo ambiente que desperte no poeta as forças da solidariedade de um amor “desconcentracionário”.

Assim, caro Nuno, se não podias exercer em toda a sua latitude o teu direito de jornalista nem realizares-te na tua condição de Poeta, conseguirias uma solução de mais habilidoso instinto de sobrevivência e mais lógica, assim te apoiasses para te manteres ao lume de água sem fazeres ondas, nem no sentido da vazante nem da preia-mar.

E que bem falarias da nossa paisagem natural, das belezas das nossas praias, da variedade cinegética do parque da Gorongosa, das típicas esplanadas das nossas capitais, da diversidade ictiológica dos nossos mares e rios, do encanto dos nossos museus de Lourenço Marques e de Nampula, dos nossos futebolistas e hoquistas e outras coisas quejandas muito bem para os que como tu hajam de aceitar amáveis convites para tão agradáveis passeios como esse de que foste alvo.

Amigo Nuno:

Quanto mais não seja, sinto-me descoroçoado pela tua falta de originalidade. E jornalista que repete é plagiador, assim como homem que copia versos plagiador é, mas poeta, nunca. De repente foi-se-te a imaginação, a capacidade de dizer coisas da tua lavra. Desataste a ser satélite “Telstar” para emitir mensagens por refração. Nem parece teu, ó Nuno. Mas é. Tornaste-te mais um. Destruíste-te ingloriamente. Estendeste-te ao comprido por nada, nem mesmo tendo a atenuante de um ideal errado ou uma suposta convicção.

Nuno:

Um jornalista não é um pregoeiro de ocasião e um poeta não é um salta-pocinhas daquilo em que no íntimo acredita para aqueles valores de que já reiteradamente afirmou não gostar nem crer.

E, sendo assim, o jornalista está consagrando o que não é a favor do jornalismo e o poeta está traindo a transcendência realizadora do ato poético. Um e outro, portanto, ficam em litígio com a verdade.

Um e outro, neste caso, uma só pessoa: tu, Nuno.

Não há que duvidar de que abusaste das concessões. E essa efusão de lugares-comuns tornou-se num compromisso para ti. Uma tomada de posição tua, Nuno. Tua e bem tua.

E foste tu o tipo fixe que refilou com os patrões em benefício dos outros. Ficaste reduzido a isso, tu, um jornalista com talento para dizer umas coisas a sério e um poeta capaz de falar em termos válidos de coisas válidas, transformado em anedota.

Olha, Nuno: já que começaste e tão bem afinadinho, só te resta um caminho: continuar. O problema agora é teu.

 

J.C.

 

P.S. – Não resisto em encerrar esta carta com as palavras do poeta Blas de Otero: “Uma vez mais o que interessa é o homem, mas não já o homem considerado como indivíduo isolado, porém como membro de uma colectividade inserta numa situação histórica determinada. Os problemas evocados são os que se apresentam hoje a toda a humanidade: assegurar a paz e obter uma liberdade autêntica. Essa liberdade que – como disse no título de um dos meus poemas – supõe ou significa igualdade de condições para o desenvolvimento de todo o homem. Naturalmente, os meus poemas referem-se, sobretudo, aos homens da minha pátria, Espanha”.

 

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31. 21 de setembro de 1963, p. 02

 

Guilherme de Melo, conferências e conferencistas

 

E em “Folhas Dispersas” tocou Guilherme de Melo na ferida: a profusão de conferencistas repentinamente surgidos em Lourenço Marques de há uns meses para cá, alguns mais necessitados de falar do que apetrechados para o fazerem.

Qualquer pessoa da cidade se apercebeu do facto e qualquer pessoa desta terra tem o direito e o dever de analisar o caso e considerá-lo à luz de diversos critérios, pois assim se chegará a conclusões de interesse sobre tão súbitas aparições de conferencistas moçambicanos de origem.

Independentemente do nível de competência com que alguns desses moçambicanos de origem se abalançam a falar publicamente de problemas sociológicos preferentemente deverá ter-se tal experiência como louvável. E quando isso seja função que se não haja de considerar como boa sob o aspeto erudito, tenhamo-la como prova de como ela é imediato fruto de uma campanha encetada na vigência governativa da equipa Almirante Sarmento Rodrigues – Dr. Adriano Moreira: a difusão da Língua Portuguesa.

O camarada e amigo Guilherme de Melo não teve a intenção de condenar os novéis conferencistas, estamos disso certos. Acontece porém que ao aflorar o assunto nele se não deteve em profundidade, antes o tratou no jeito leve e costumeiro próprio da secção dominical que há tantos anos subscreve. No entanto, haveria quem se sentisse não criticado mas condenado por Guilherme de Melo mexer com desenvolto à-vontade no verificável fenómeno. Uma questão de sensibilidade muitíssimo justificável em ambas as reações.

Tocasse G. de M. na coisa noutro momento e em relação a outras entidades singulares e não seria isso problema nem motivo de objeções nem carregar ressentido de sobrecenhos. Contudo, e precisamente porque essa hipótese já é felizmente mera conjetura, como encarar todo este encadeamento de factos?

Em primeiro lugar é lisonjeiro para quem desencadeou em Moçambique a campanha do ensino da Língua Portuguesa como meio de comunicação e instrumento de cultura entre o povo originário deste território que tão depressa surgissem os resultados e com tanta vitalidade que nenhuma espécie de timidez impediria de em língua portuguesa se versarem temas sobremodo delicados, complexos e de viva atualidade.

Em boa verdade e muito sincera opinião pessoal, nunca em Moçambique se deu tamanha consagração à Língua Portuguesa como neste período histórico, já que ninguém deixará de aceitar como frutuosa esta utilização da Língua por indivíduos de outros eixos de cultura para o levantar de problemas em debate público.

A propósito em conto: Estando ainda a trabalhar no Notícias foram várias as vezes e as pessoas que se não coibiram de manifestar a sua estranheza quando me sendo apresentadas e a terceiros confessarem-se admiradas de ao jornalista cujos escritos apreciavam nunca haverem admitido relacionar com o indivíduo de cor que vinham de conhecer. Caso houve até em que a dúvida levaria à suspeita de que eu assinasse artigos, crónicas e reportagens que outrem para mim generosamente escrevia. Desfaria até uma dessas suspeitas, garantindo a paternidade da lavra dos escritos à minha humilde pessoa, o sr. capitão Ismael Mário Jorge, o que pela boca do sr. capitão Ismael eu por minha vez ficaria a saber. É ou não é sintomático?

Voltando à questão, não são poucas as pessoas que começam a enfadar-se com tanta conferência e tantos conferencistas, mormente por os temas serem sempre de discussão social. Esse enfado também se explica facilmente se atentarmos que há uma mão cheia de hábitos bruscamente deslocados do seu velho e fofo cadeirão. E porque o hábito é pai do vício e o vício uma sempre grave moléstia, ao meu amigo G. de M. escaparia na sua boa fé de que ao referir-se em tom de crítica àquilo que honestamente lhe não havia passado despercebido poderia estar a ser peça de uma engrenagem de hábitos já tradicionais, ainda que muito menos pensasse em ofender a suscetibilidade de quem quer que fosse. É o caso não poucas vezes frequente de um vício contraído cujos efeitos se ignoram.

Seja como for, são de estimular e por muito boas razões todas as conferências e conferencistas que apareçam publicamente a debater problemas de interesse geral mais direto para uns e menos para outros, mas com o mesmo grau de importância para todos. Mau seria que tendo sido facultados como o não haviam sido antes os instrumentos de cultura que o domínio de uma língua evoluída permite, os seus novos usufrutuários se não sentissem com ela suficientemente familiarizados ao ponto de não a terem como legítimo meio de expressão.

E quando surgem moçambicanos de raiz, digamos negros, a falar português tu-cá-tu-lá em sessões públicas, percebendo e fazendo-se perceber perfeitamente, é a consagração da Língua Portuguesa, a sua ecumenicidade que se corporiza ou sublima, e um processo de unidade que se estrutura pelos únicos valores insujeitáveis a qualquer contestação: a cultura do espírito e um veículo linguístico comum.

Que se fale, pois, livre e francamente em sessões públicas e se digam uns aos outros as coisas que se sentem e que necessariamente é tempo de conhecerem a luz do sol, já porque nisso se estremam campos e os homens se nivelam, para já e salutarmente, em oportunos exercícios de Português.

 

JOSÉ CRAVEIRINHA

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32. 29 de setembro de 1963, p. 02

 

Uma carta para o patrício Estêvão Tembe

 

Estêvão:

Primeiro desculpe-me o tom familiar do tratamento. Não se ofenderá com certeza com ele nem comigo na medida em que eu lhe garanto que o uso sempre que desejo estabelecer uma corrente de sentimento e de franqueza com outros. E V., Estêvão, está entre os que me merecem a simpatia suficiente para tal.

O Estêvão apareceu de há uns tempos para cá a subscrever artigos no jornal Notícias desta cidade. E a subscrevê-los com todos os seus três nomes. Depois proferiu uma conferência (?) nos salões da Associação dos Naturais de Moçambique, para o que solicitou e obteve o patrocínio daquela coletividade regionalista.

Um jornalista, o Guilherme José de Melo, tão moçambicano como nós, caro Estêvão, que não é peco, deu por qualquer coisa não muito normal em qualquer ou quaisquer dessas conferências ultimamente lidas entre nós. E desenvoltamente tratou de chamar a atenção para o facto não em particular, mas na generalidade. Isso levaria o caro patrício Estêvão a perder a serenidade acusando o Guilherme de Melo de racista. Assim, como uma acusação de tal importância e gravidade se não faz de ânimo leve e por isso o patrício Estêvão cometeu uma deplorável falta de sentido de justiça, não posso deixar em julgado que o seu erro levaria Guilherme de Melo a perder a calma por sua vez quando se faria eco de hipóteses de racismo antibranco atribuídas a outrem e cuja veracidade a todos nós será difícil sustentar, já que certos efeitos não deverão ser aceites por si mesmos sem uma análise das causas, fruto de um estudo objetivo e desapaixonado da dinâmica do tempo no xadrez histórico.

Caro patrício Estêvão:

O perigo do preconceito racial é o ser ele um monstro que para melhor sobreviver se apressou em inventar várias máscaras. E com boa técnica de prestidigitação exibe a que lhe convém para manter os homens sob o seu reinado de pesadelo e espectros. O patrício Estêvão está sob a nefasta hipnose de uma dessas máscaras ao teimar afanosamente que o Guilherme de Melo é racista. Não devemos ser deliberadamente injustos para com outras pessoas. Toda a reação tem uma explicação lógica. Devemos procurá-la libertos de influências estranhas, a fim de sermos tão justos quanto a justiça é um direito que reivindicamos para connosco sem a tomarmos à força a não ser que à força ela se nos negue.

É verdade, patrício Estêvão, que a questão raça está na primeira linha dos problemas da atualidade. O homem enfrentou desde sempre o mito da sua condição em relação a outros grupos de caracteres físicos não semelhantes ou em relação a povos de outras áreas de cultura, mas é só neste momento histórico que o problema assume uma integral responsabilidade por parte do Homem Culto, da Civilização em suma. Responder ao preconceito racial com o preconceito racial é lutar contra um erro com o mesmo erro. O patrício Estêvão viu no desabafo do Guilherme José de Melo a crítica de um branco em vez de o tomar como crítica de um jornalista. E mais veemente seria a sua reação se soubesse que Guilherme José de Melo, além de branco, descende de alemão. O preconceito arrastaria o sentimento de ofensa do amigo Estêvão a ver no Guilherme José de Melo não só o branco, mas também um filiado no partido nazi. Ora o regime nazi ou fascista num governo de opressão não transforma o povo desse país em povo fascista, mesmo que, como no caso do fascismo e nazismo, tais ideologias políticas contem no seu ativo com formas de colaboração das populações em ajuntamentos em massa, fenómeno espetacular que ditaduras do tipo hitleriano, mussolínico, peronista, estalinista e chianguekaichekiano foram hábeis em proporcionar com evidentes provas de conhecimentos profundos da psicologia das multidões, suas fraquezas e seus complexos.

Por mim gostaria que o patrício Estêvão não tivesse visto no Guilherme de Melo o branco no caso em que o jornalista na sua crónica se não eximiu em dar a sua opinião pessoal sobre conferências e conferencistas.

Não lhe doa a pena, amigo Estêvão, noutras ocasiões de necessária tomada de posição, que não faltam, assim as deseje.

A questão raça, caro patrício Estêvão, deve merecer respeito, primeiro do que a ninguém, a nós mesmos. É uma questão muito séria. Tratá-la por mera suscetibilidade pessoal não é bom exemplo, seja lá de quem for. É tempo de se estabelecer uma ponte de entendimento entre todos. Esse entendimento não se fará com ressentimentos à flor da pele. O nazismo, por exemplo. Está ligado à Alemanha, mas não vejamos em cada alemão um homem da Gestapo, um Eichman ou um Himmler. E no que toca aos Estados Unidos da América, veja lá o caro Estêvão como também é possível ser pouco justo: ver toda a América como sede da seita Ku-Klux-Klan ou o americano como qualquer racista dos Estados do Sul, quando Abraão Lincoln era americano, a viúva Eleonor Roosevelt é americana e outra figuras de projeção intelectual ou artística, que abertamente se batem pelos direitos dos negros, americanos são. E nos Estados Unidos não há negros racistas? Há. São os tais que querem responder ao erro do preconceito com o mesmo erro de preconceito. São esses efeitos que é preciso combater com mais força do que aquela que alguns indivíduos ou instituições usam levianamente para criar as causas. E na esteira do pensamento antes expresso, vejamos ainda o caso do “apartheid”: ser sul-africano branco não é ser adepto do “apartheid”. O que faz ser a favor de tal aspeto desumano da política de um governo é o ser-se racista e não o ser branco de nacionalidade sul-africana. Coisas distintas e que é preciso não confundir para que todos nos possamos compreender no sentido de se encontrar uma fórmula antirracismo que vá para além do conceito de coexistência paternal ou pacífica, conceito que pessoalmente eu repudio porque pressupõe núcleos vivos constituindo partes distintas que, por sua vez, não entrando em conflito, também não compõem um harmónico todo. Coexistência pacífica é gíria para pactos de não agressão entre poderes políticos de nações e não para seres de uma mesma condição: a condição humana.

E quanto mais humano se é mais coragem e fé se tem para não dar ouvidos à exaltação, a razões de vingança ou a sentimentos de ódio. E quanto mais cultos mais fechados ao retrocesso dos preconceitos.

O Estêvão Salomão Tembe está irritado. E toma a sua irritação tanto a sério que precisa de a alimentar com razões plausíveis. Daí ter caído na acusação racial ao tentar desafrontar-se das alusões do Guilherme José de Melo, não se dando conta dos elementos que assim fornecia ao autor de “Folhas Dispersas” para ter insinuado o que o patrício Estêvão Tembe achou que devia ser particularmente consigo e na generalidade com a sua raça.

Aqui para nós, Estêvão Salomão Tembe, estou certo de que o Guilherme José de Melo, jornalista, poeta e pessoa não é racista. Pudesse eu dizê-lo tão categoricamente sempre que um patrício estivesse a braços com a mesma alienação, a mesma dúvida, o mesmo ressentimento.

Estêvão Tembe:

Devemos ser compreensivos. Aceitar novos conceitos com a mesma boa vontade que pretendemos para a justa realização dos nossos anseios. E uma coisa que devemos começar a admitir com naturalidade é o que o ano passado, em artigo ainda publicado no jornal Notícias, a cujo corpo de colaboradores passei a pertencer depois de já não fazer parte do corpo redatorial privativo, tive oportunidade de dizer sobre o conceito de africano estendendo-o a todos os que nasçam em África, repetição afinal do fenómeno que naturalmente toda a gente hoje perfilha do conceito de americano para quantos nasçam nas Américas do Norte, Central e do Sul.

Estêvão:

O Guilherme José de Melo nasceu aqui, é Moçambicano, portanto nosso patrício e por isso mesmo também africano. A cor da pele, os seus olhos azuis e o cabelo louro não interessam. São particularidades físicas como a do homem gordo, orelhas grandes, pequena estatura, etc. Não é preciso ser descendente de ronga, chope, sena ou macua. Isso seria parar no conceito de tribo, não evoluir no contexto socio-histórico, não acompanhar a marcha inevitável das sociedades humanas sacudidas em todas as suas estruturas pelas fantásticas conquistas da ciência, os extraordinários inventos no domínio da técnica e não acreditar no substrato da natureza universal do género humano.

Estêvão Tembe:

Desculpe-me a mim também se nalgum momento desta carta pude parecer injusto para consigo, o que a suceder não seria por maldade e muito menos por racismo, já que estaria a ferir-me a mim próprio através das tantas muito próximas afinidades existentes entre nós os dois.

E muito mais desejaria dizer sobre tudo isto, mas nem o espaço mo permite nem a paciência de que possa dispor mo aconselha. De qualquer maneira, espero ter dito o suficiente nesta altura da nossa vida tão importante de ser vivida e de cuja beleza muitos se não apercebem porque se não dão ao trabalho de se libertarem do círculo para a encontrar em toda a sua plenitude reveladora e deslumbrante. Falta-nos a perspetiva, patrício. Falta-nos a perspetiva.

Estêvão Salomão Tembe: – E é só isto!

 

JOSÉ CRAVEIRINHA

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33. 07 de outubro de 1963, p. 02

 

365 dias – atestado de maioridade

 

Era uma vez…

O milagre de um ano de vida de um jornal. E um ano de vida intensa, cheia de recordações boas e lembranças más, vitórias, desesperos e algumas derrotas também.

Perante o Leitor A Tribuna está sempre em dívida. E dessa dívida se não redime, porque é ao Leitor, antes de a mais ninguém, que este jornal está grato. Não fora o Leitor e A Tribuna não teria podido existir, ter individualidade, sair à rua todos os dias e todos os dias estar em contacto com o lar das gentes de Moçambique.

Muito do que A Tribuna é hoje se deve aos dedicados amigos e em parte iguais aos seus fiéis inimigos desde o primeiro minuto. Uns e outros revelaram-se sempre firmes no gostar e no não gostar. E nessa constância extraíram os que neste jornal trabalhavam o estímulo para continuar, porque se o gostar de uns estava de acordo com o pensamento que se desejou imprimir na orientação redatorial, também o não gostar de outros constituía um testemunho de que essa orientação teve personalidade suficiente para concitar a antipatia de onde se não desejavam aplausos nem hossanas.

A um ano de vida é que se pode tomar o pulso à situação. Fez-se bastante e muito ficou por fazer. As razões não interessam agora. E se um ano para comemorar um aniversário é o suficiente, para a História não é nada.

Eu, que fui sentindo alguns dos melhores companheiros da primeira hora deixarem um por um os seus lugares na sala comum da Redação deste jornal, deveria ter alguma coisa de importante para dizer sobre eles em relação a A Tribuna e acerca de A Tribuna em relação a eles. Reconheço a necessidade disso e penitencio-me por não ser ainda agora que o farei.

Uma retrospetiva ao recheio de A Tribuna nestes trezentos e sessenta e cinco dias dá um saldo positivo.

Nenhum outro aqui, releve-se-me a imodéstia, deu em tão pouco tempo um sentido de vitalidade em função do lugar pela colaboração do seu próprio corpo redatorial. Quase todos os dias um trabalho para editorial e outro para rodapé da segunda página, além dos vários apontamentos relacionados sempre com problemas locais ou com interesse direto sob a rubrica primeiro de “Pontos de Vista” e depois “Preto no Branco”.

E se certos setores da vida moçambicana não levaram a bem as críticas neste jornal publicadas, a A Tribuna cabe apenas a responsabilidade de ao criticar não o ter feito para satisfazer um prazer, que seria mórbido, de especular com a opinião pública, o que seria contraproducente, mas sim o de ter exercido plenamente o seu direito como órgão vivo da Imprensa de Moçambique.

Uma Imprensa que não levanta problemas de caráter público ou que se limita a fornecer noticiário das agências estrangeiras de informação não cumpre a sua função, não é leal para com as forças dinâmicas representadas pela população em geral e as entidades oficiais em particular.

Uma Imprensa que não tem nada para dizer, trai as instituições e não mostra merecer enfileirar na grande família que é o Jornalismo. E na medida em que não se faz eco de queixas, direitos ou problemas da comunidade, por que razão haveria de existir mais um jornal? Por que razão haveria de ser autorizada superiormente a edição de mais um membro da Imprensa moçambicana se ao mesmo se não atribuísse legítima uma ação de responsabilidade para com o próprio Governo e autarquias quando no “falar mal” se pode encontrar uma desassombrada forma de colaboração direta?

Vive A Tribuna há um ano. Bem ou mal é um jornal com o seu público certo. Isso confirma a sua individualidade, como também prova a individualidade de cada um dos restantes colegas da Imprensa moçambicana.

Cada um no seu lugar e todos pelo Jornalismo não são demais.

E pelo individualismo de cada jornal se terão, a todo o tempo e na devida extensão, a medida do progresso, a evolução da mentalidade coletiva em toda a diversidade do agregado social.

Viver um ano é viver uma vida. E viver uma vida alvo da atenção de todos, a favor ou não a favor, é um atestado de maioridade passado a A Tribuna.

 

JOSÉ CRAVEIRINHA

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34. 29 de outubro de 1963, p. 02

 

LICENÇAS GRACIOSAS

E FUNCIONÁRIOS MOÇAMBICANOS

 

Numa das últimas sessões do Conselho Legislativo foi defendido pelo vogal sr. capitão Manuel Simões Vaz um mais largo prazo no direito à licença graciosa dos funcionários públicos de Moçambique, juntamente com a dos empregados das atividades particulares.

Quanto à prorrogação do tempo para a concessão do gozo de licença graciosa à Metrópole foi a opinião do vogal legislativo logo que do domínio público, alvo de várias apreciações apaixonadamente discordantes por parte de funcionários das repartições públicas de Moçambique. Terão razão?

Ouvindo uma ou outra pessoa do nosso convívio logo nos apercebemos da necessidade que havia em estabelecer colóquio sobre o assunto das licenças graciosas que o Estado concede aos seus agentes depois de quatro anos de prestação efetiva de serviço.

Comecemos por dizer que o sr. capitão Vaz levantou e muito bem a questão. Muito bem e ainda muito a tempo porque é em escala pública que se deve abrir debate sobre a extensão dos benefícios ou dos prejuízos advenientes do facto em causa, tanto para os funcionários como para Moçambique.

A história das licenças graciosas dá-nos interessantes elementos de apreciação. É curioso registar que foram dirigentes da Associação Africana desta cidade os primeiros a baterem-se pelas licenças graciosas à Metrópole também para os naturais ultramarinos.

Acreditavam aqueles dirigentes que lhes assistia o direito de reivindicar uma regalia de que só usufruíam os naturais da Metrópole aqui exercendo funções públicas. Ao tempo foi essa reivindicação tida quase como uma cruzada de que a Associação Africana por dever se desincumbia, principalmente através do seu órgão oficioso O Brado Africano então um jornal que representava de facto o pensamento dos naturais de Moçambique em todos os casos e em quaisquer circunstâncias, já que era unicamente nas suas páginas que se fazia eco dos mais instantes problemas sociais relacionados com o setor da população que aquela Associação em particular sempre representou simultaneamente perante a opinião pública e as instâncias oficiais.

Acreditavam os mentores da Associação Africana, de muito boa fé, defender os mais justos direitos dos naturais ultramarinos quando expunham o desejo de cumprir serviço militar assim como gozar também a licença graciosa em climas europeus da Metrópole Portuguesa. Eram ao tempo as razões consideradas muito legítimas e portanto nelas cabem hoje reais provas do bom portuguesismo de figuras ilustres de africanos como eram os consagrados irmãos João e José Albasini, Estácio Dias, Rui de Noronha e outros.

Deu o Governo Central satisfação às aspirações dos naturais a eles tornando extensivo o direito de licenças graciosas com passagens pagas para gozo na Metrópole Portuguesa.

Aborrecem-se agora todos os funcionários do Estado por um vogal do Conselho Legislativo defender a ideia de que seja mais espacejado o prazo de quatro anos que atualmente vigora para usufruir as já citadas licenças a expensas do Governo.

Não querem esses funcionários públicos atender a outras razões que não sejam os seus interesses pessoais, tanto se lhes dando que haja disponibilidades financeiras que comportem tamanha despesa anualmente e nada lhes importando o sacrifício do erário público moçambicano em tão delicado momento de sacrifício como é o atual.

O que o sr. capitão Vaz preconizou é portanto uma posição ditada pelas circunstâncias atuais, que não se podem prender com sentimentalismos deste ou daquele em prejuízo de uma noção de lealdade para com Moçambique, defendendo a sua economia interna.

Cabe-nos a todos, moçambicanos de nascença ou de convicta adoção, substituir costumes ultrapassados pela experiência e por novos conceitos de educação e vivências adaptando os nossos usos e costumes a realidades mais consentâneas com a atualidade. E nessa linha de ideias só não se deve razão ao sr. capitão Simões Vaz porque não completou a sua ideia. Completemo-la todos nós, eliminado das prerrogativas dos funcionários públicos essa coisa das licenças graciosas gozadas na Metrópole Portuguesa com basto dispêndio dos cofres da Fazenda de Moçambique.

Pensando “maningue” no caso é de se não admitir qualquer má intenção do sr. capitão Vaz contra os funcionários públicos de Moçambique, quer por inveja de benesse que de algum modo com os seus próprios meios lhe estivesse vedada ou porque isso afetasse direta ou indiretamente os bens que possua depositados em seu nome.

Já lá vai o tempo em que os trópicos constituíam um lugar de maldição para o homem europeu que nele se fixava e aqui se consumia de febres e doenças malignas cuja cura procurava em melhor clima, melhores águas e melhores estabelecimentos hospitalares.

Hoje ninguém desembarca de capacete, rede mosquiteira e bomba de “flit”. Já não grassa a malária e o paludismo não é problema sanitário que preocupe para além da escala doméstica.

A licença graciosa à Metrópole pertence a uma época ultrapassada pelas exigências do presente. O funcionário moçambicano deverá gozar a sua licença graciosa, sim, mas onde está: em Moçambique.

Com a generalização das referidas licenças desvirtuou-se o sentido da regalia. Criou-se uma errada mentalidade no funcionário acerca de inóspitas condições de vida que ainda pudessem prevalecer a despeito do progresso dos meios de assistência sanitária, nível de vida, etc., coisas que a serem contra a saúde pública não seria justo a elas submeter a população que não exerce funções no Estado por contrato ou no quadro.

Vamos pois mais longe do que o sr. capitão Vaz já que defendemos a extinção pura, simples e total das licenças graciosas gozadas na Metrópole Portuguesa com passagens pagas com maciças verbas moçambicanas.

Considerar que os cofres públicos de Moçambique tenham de arcar com essa despesa é o mesmo que persistir em conceitos dos quais a população, seja ela qual for, não pode beneficiar sem que seja um anacronismo o seu gozo e uma grave injustiça a sua distribuição nunca possível entre toda a gente que compõe a população moçambicana.

Não se defendendo a ideia de que os funcionários públicos metropolitanos devam gozar tal espécie de licença em Moçambique ou qualquer território ultramarino de quatro em quatro anos, nem sendo lógico conceder-se graciosas àqueles que fossem funcionários no Algarve, Alentejo ou outra província em relação a outro lugar do espaço português mais saudável, também já não podemos aceitar como boa ou como necessidade aquilo que não tem razão de ser nem se explica que continue hoje em dia. Esta prática está exatamente a dar ideia de que os moçambicanos afinal gostam e preferem estar sob as leis, costumes e usos de que só os heroicos pioneiros que desembarcavam em África com os seus capacetes coloniais e redes mosquiteiras sentiam a necessidade, para retemperar as forças e matar nostalgias dos parentes e do ambiente familiar em romagem de saudade ao torrão natal.

É tempo de habituar os funcionários públicos de Moçambique a só contarem com o gozo de licenças no território, auxiliando assim a não pesar nos cofres da Fazenda em momento que não é de abastança e sim de muita consciencialização, muita reflexão, muito apego a isto tudo que é Moçambique.

 

JOSÉ CRAVEIRINHA

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35. 05 de novembro de 1963, p. 02

 

Ainda as licenças graciosas gozadas na Metrópole

 

Em recente rodapé defendíamos categoricamente a extinção das licenças graciosas com passagens pagas de que principalmente o funcionalismo público tem vindo a beneficiar (?) daqui para a Metrópole.

Ora, ao darmos publicidade a tal pensamento não acalentávamos qualquer ilusão sobre as reações que haveriam de surgir, não só dos que, por esse meio, de quatro em quatro anos vão até à Europa matar saudades familiares e depositar o produto de umas economiazitas como por parte dos que sendo ultramarinos para lá vão no muito pessoalíssimo desejo de conhecer Lisboa – para estes, infelizmente, Portugal é só a cidade de Lisboa – e lá deixarem o empréstimo concedido pela Caixa Económica sobre o vencimento, a liquidar no máximo de 24 meses.

Desejamos novamente frisar que nem uns nem outros deverão em boa consciência continuar a fazer um tipo de turismo de que não beneficia a economia de Moçambique nem o desafogo financeiro de cada um. No primeiro caso é afetada a Fazenda pública, enquanto que no segundo caso ninguém tem nada com isso, problema particular que é.

Pareceria pouco afortunado da nossa parte preconizar uma espécie de isolacionismo sobre parte da população moçambicana. Nanja nós pretendermos tal ou outra forma de alienação, como tão-pouco ficarmos bonacheironamente em silêncio quando a lógica irrefutável dos factos não encoraja hoje em dia um turismo realizado com meios que não provêm da independência económica de cada qual mas sim de recursos em que ficam a maior parte das vezes comprometidos os vencimentos durante dois anos em descontos mensais substanciais.

Não se põe em dúvida a necessidade de os povos obterem por seu livre alvedrio um somatório de conhecimentos por meio de férias gozadas em lugares estranhos àquele onde exerçam efetivamente trabalho. Lugares estranhos esses que poderão ser em terras estrangeiras ou dentro de fronteiras, assim o permitam posses e proventos.

É evidente que a licença graciosa à custa do erário público nada tem com um verdadeiro conceito de turismo. Um turismo como ele deve ser. E muito menos quando uma pessoa em lugar que não conhece e onde não tem casa nem família, nem amigos íntimos tem de enfrentar despesas com alojamento e diversões contando com menos do que o seu vencimento normal, visto só ter direito a metade ou pouco mais do que aufere em Moçambique.

Sejamos pois mais objetivos, ao mesmo tempo que defendemos de nós mesmos um desavisado comportamento, bastando que todos pensem mais serenamente como se pode ser incongruente aceitando prazenteiramente uma coisa hoje fundamentalmente negativa.

Todos aqueles que optam ainda pelas licenças graciosas do tipo em vigor, deverão atentar na má qualidade do turismo em que estão a comparticipar, já que um intercâmbio das populações só em moldes diferentes será sumamente profícuo para o estreitamento dos laços afetivos sempre de estimular entre povos de uma mesma comunidade cultural por primazia e destas com adventícias secundariamente.

Antigamente tinha-se como natural a entrada em Moçambique de emigrantes. Daí, em toda a parte, o clássico colono, figura que, principalmente na América do Norte, ficaria perpetuada na ocupação do território hoje estadunidense nas clássicas lutas dos pioneiros com os povos indígenas peles-vermelhas que na defesa das suas terras acabariam por criar figuras de heróis americanos como Búfalo Bill, Texas Jack e outros.

Não fugiu a tal conceito de emigrante no sul da África o povo holandês consagrado como os “voortreker”, pioneiros da ocupação do território do Transval e que também com o sangue dos seus heróis fundaram a atual República da África do Sul contra as aguerridas hostes dos guerreiros zulus, a quem venceram e submeteram, sustentando batalhas ferozes.

Hoje, o conceito de colono desapareceu tanto na América do Norte como na África do Sul por ultrapassado no moderno contexto histórico daqueles países.

Por isso, não há que termos outra atitude que não seja a que outros povos já adotaram, até porque não vamos admitir estarmos aqui mais atrasados do que eles na ocupação de áreas culturalmente menos evoluídas.

Isso, em relação a uma presença portuguesa em África, nem é problema que se ponha, tal a sua impertinência perante um pioneirismo luso em territórios que pela valentia dos seus soldados conquistou e persistência dos seus colonos ocupou.

Maus moçambicanos serão os que, menosprezando a posição que a todo o custo devem procurar manter, não fazem questão em requisitar, salvo excecional motivo de força maior, passagens por barco ou avião, o que, não lhes custando muito, pesa bastante no orçamento de Moçambique pelo que a Fazenda depois tem de pagar às companhias de navegação e de transportes aéreos, com filiais estabelecidas nos territórios ultramarinos.

E maus moçambicanos serão não apenas aqueles aqui nascidos mas também os aqui fixados, uma vez que atualmente já se fez necessário acostumar os emigrantes portugueses de que não são colonos ou então que não vêm a Moçambique mas para Moçambique.

Sim! Esta a diferença: vir ou não vir para Moçambique.

E assim estaremos todos de acordo com os princípios que enformam a Junta Provincial de Povoamento nas suas elevadas conceções e cheia de coerência o apodo de povo pluricontinental com que se atribui o Português.

Não se deixe generalizar a ideia de que os portugueses que vêm para África o fazem transitoriamente. Há provas de que muitos vieram para ficar e se voluntariamente o fizeram foi porque optaram em viver e constituir família em terra moçambicana, moçambicanos tornando-se.

A emigração de nacionais portugueses para Moçambique não deverá nunca ter o mesmo significado clássico de emigração – para a Venezuela, por exemplo – assim fazemos votos, já que somos contrários, irredutivelmente, a interpretações que deturpem quanto mais não seja até os planos de intensivo povoamento que o Governo tão carinhosamente preconiza e efetivamente aplica com a fixação de famílias rurais na Cela (Angola) e Guijá (Moçambique).

Voltando às licenças graciosas – 6 meses em território metropolitano – muito me entristece que me não apoiem os moçambicanos que a isso se julgam com direito imediato ou num futuro próximo, mas nada mais posso aduzir em favor da minha opinião. Cabe aos demais pesar bem os seus interesses individuais contra os interesses coletivos, afirmar firmemente uma posição ou pachorrentamente negá-la.

Contudo, fique desde já claramente assente o respeito por todas as realizações que tendam a mútuos conhecimentos de grupos populacionais de diferentes áreas sob um mesmo contexto linguístico. Por meio de embaixadas culturais, desportivas e excursões recreativas em periódico vaivém África-Metrópole atingir-se-ia em muito maior profundidade o objetivo espiritual que simpática e sentimentalmente se pretende preservar, pois assim se daria corpo à única coisa a que verdadeiramente se pode chamar intercâmbio ou fazer aquilo que se pode considerar em evoluído e bom português: Turismo.

 

JOSÉ CRAVEIRINHA

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36. 09 de novembro de 1963, p. 02

 

Meu caro aprendiz de jornalista

 

Vejo-te todos os dias debruçado sobre a máquina de escrever, a testa franzida no esforço de juntar ideias e dominar pontos e vírgulas.

Se te disser que tenho pena de ti talvez sejas capaz de ficar abespinhado comigo. É natural. És novo. Forçosamente tens uma conceção das coisas ainda cheia de miragens cor-de-rosa. E ainda por cima deves estar empanturrado de leituras do O Cruzeiro e das reportagens do David Nasser.

Naturalmente que o defeito é meu. Tu pensarás assim e eu calar-me-ei. Responder o quê e para quê? Sei que te sentes inchado com a profissão de repórter aos dezanove anos de idade. Tão novo, não é? Nem sequer te apercebes de que és um candidato a uma cruzada. Uma verdadeira cruzada. Talvez gloriosa ou talvez inglória, ainda não o sei bem.

Mas atenta bem: não é nada por causa de teres que fazer notícias de acontecimentos sociais, jantares, inaugurações, partidas e chegadas. Não é só por isso. Sei que te deleitas com o cartão de repórter, a fotografia tipo passe e uma carimbadela a degolar-te meio pescoço e meio ombro, coisa que não te dói tanto que volta e meia mostras o cartão aos companheiros de farra ou às miúdas.

“Não acreditam? Olha. Sou ou não sou eu?”

Mas o que me faz escrever-te esta carta vem da conversa do outro dia sobre jornalismo, reportagens, o David Nasser, o Brasil, etc. Sabes lá, meu caro, como fiquei depois de conversar contigo e ouvir-te falar com um entusiasmo delirante de coisas de fábula. Ouvia-te gabar a coragem de David Nasser, analisar um “jornalismo brasileiro” e “pôr nos píncaros da Lua[“] os jornalistas norte-americanos e brasileiros[,] “esses sim, sabem escrever!”.

Pois desculpa lá, meu caro, mas eu não concordo contigo. Sobre o David Nasser é claro que é um profissional de mão cheia. Em qualquer parte o homem tem interesse. Mais há uns anos do que ultimamente. Há um tempo para cá parece que mudou. Não o estilo mas o homem. Ou antes as ideias que mais caracterizavam a personalidade jornalística desse “monstro” do jornalismo sul-americano que é David Nasser[,] o repórter que escreveu “Falta Alguém em Nuremberga”.

Bem! Quanto ao conceito de “jornalismo à brasileira” com que tu, meu caro aprendiz de jornalista, pretendes definir quanto aparece escrito nas principais revistas ou nos jornais de mais tiragem do Brasil, isso não passa de uma escorregadela só desculpável num inexperiente nestas coisas da Imprensa.

Sabes que mais? “Não há jornalismo à brasileira nem jornalismo à americana, nem jornalismo à Xipamanine ou jornalismo à Munhava”. Jornalismo é jornalismo em toda a parte dentro do mesmo grau sempre que válido. Sempre que autêntico. Sempre que represente em toda a sua latitude o trabalho do repórter, a crónica do colunista, a imagem captada pelo fotógrafo. Não é o lugar que o jornalismo é aquilo que o jornalista comunica ao grande público. O público que compra o jornal para ler a verdadeira notícia, a reportagem séria, a crítica aberta. Esse público é que precisa de não ser mistificado pelo jornalismo seja da Patagónia ou da Cochinchina. Não se lhe dar “gato por lebre”.

Por exemplo: o David Nasser vinha para aqui e, muito logicamente, metia-se num jornal. Eu não nego, nem pensar nisso, o valor do David Nasser como repórter de primeira que é lá no Brasil ou mesmo na América do Sul. Mas porque não vamos admitir que ele, mestre da coisa, falhava redondamente ao mudar de ambiente?

Mas era ou não um gozo, ver o David Nasser em palpos de aranha para arrancar uma das suas reportagens? Está claro que era embora por outro lado fosse muito triste. Para ele e para nós.

Ainda falando o sobre o tempero que te faz crescer água na boca quando lês a revista O Cruzeiro, por exemplo, contenta-te em sentir inveja. Mas não penses que uma boa reportagem é como um indivíduo. Uma autêntica reportagem não tem nacionalidade. É apátrida. Vale pelo que é como verdade, como assunto em que o jornalista vai ao fundo das coisas, chama-as pelo seu nome, mostra ao público os seus rostos sem maquilhagem.

Todos sabemos o que é a revista O Cruzeiro. Belas reportagens e belíssimas crónicas, curiosíssimas secções humorísticas e outra colaboração aceitável de mistura com infelizes escritozinhos para pôr poeira nos olhos de caboclo de aldeia sertaneja. Um bazar de coisas boas, ótimas, péssimas e medíocres. Coisas verdadeiras e coisas erradas. Enfim, o costume quando se tem de constituir um quadro redatorial com pessoas das mais diversas opiniões e tendências.

Mas não julgues que nós aqui não somos jornalistas eméritos. Somos. Há mais mérito no pouco que escrevemos do que no muito que David Nasser já disse ou tem dito. Somos jornalistas de academia. O que o público lê da nossa lavra é muito suor, muito esforço.

O David Nasser, tenho a certeza, não conhece estas dores de parto jornalística [sic].

Pois meu caro aprendiz de jornalista: nada de entusiasmos exagerados sobre conceitos de jornalismo. Não é uma questão de bitolas regionais mas de regras, princípios. Regras e princípios por que se rege a Imprensa de toda a parte. De todo o mundo. Regras universais de uma Imprensa válida pelo que significa como reflexo de cultura, progresso e endosso de responsabilidades aos que são jornalistas, mas jornalistas mesmo.

E fiquemos por aqui caro colega aprendiz de jornalista.

 

J.C.

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37. 15 novembro de 1963, p. 02

 

Minha profissão de fé

 

“Moçambique não existiria com os seus filhos divididos. Não pode haver maiorias nem minorias, determinadas seja pelo que for. Nem maiorias absolutas nem minorias qualificadas e dominadoras. Nem  comandos derivados de poder económico, nem de meras forças demagógicas”.

São palavras como as que antecedem, por elas mesmas, ricas de conteúdo construtivo que infelizmente não servem de doutrina a muitos dos que vivem aqui e só porque amiúde se esquecem do lugar geográfico de Moçambique e da complexidade dos problemas humanos que tal fenómeno suscita. Disse-as conscientemente o almirante Sarmento Rodrigues em ato público dirigindo-se a um grupo de jovens estudantes universitários. Palavras só para estudantes? Não. Palavras para todos.

Desejaríamos jamais infringir quaisquer regras de compostura completamente aceites pelos diversos setores da população moçambicana, maiorias ou minorias, mas não vemos como consegui-lo tão airosamente que não caiamos em traição para com princípios de uma cidadania que, mesmo que outros não a reconhecessem, tarde ou cedo não entendêssemos ser nosso direito a seu tempo naturalmente dessa qualidade natural e livremente atribuir-nos.

Há tempos – que velhos nos sentimos já no jornalismo – escrevíamos nós que ao português nos seus contactos com povos de raça, cultura e costumes diferentes dos seus até faltara o mérito de ser verdadeiramente racista.

Com essa tirada pretendíamos apenas frisar como seria fácil, ao tempo dos primeiros passos do homem europeu em África, o português criar aquela muralha que, não fazendo os que chegavam prescindir dos que já estavam, porém, humanamente os não juntava: o RACISMO.

Foi dessa inaptidão do português para a aberta discriminação racial que haveria[m] de surgir núcleos societários pluriformes pela mestiçagem de raças e culturas como são os casos do Brasil, Cabo Verde, Angola e Moçambique, em especial. Não seria por falta de firmeza lusitana com certeza já que firmeza e ânimo sobejaram para cometimentos que espantaram o mundo culto de então; e por tibieza sentimental também não porque nunca houve povo em guerras intestinas ou de expansão empenhado e capaz de manter vivo o espírito ferrenhamente nacionalista que o fosse carpindo mágoas e sentimentalismos piegas.

Analisando as páginas mais significativas da história dos descobrimentos marítimos daí ressalta o facto de quanto foi extremamente versátil o engenho dos portugueses da época entregues ao serviço dos interesses expansionistas desse pequeno país que Portugal sempre foi. Versátil no sentido de uma imediata adaptação a situações novas, tanto no aspeto de relações humanas como económicas, nada nos denunciando hoje que não fossem elas as mais felizes para a mentalidade de comércio e conquista prevalecentes naqueles recuados tempos.

Isso nos anos dos descobrimentos até ao expiar do século passado e princípios deste era bem uma constante portuguesa válida em relação aos atos a que olimpicamente nas possessões ultramarinas se permitiram outras nações como a Inglaterra, a França, Holanda, Bélgica, etc., países que se deram em fixar contingentes de colonos e promover sistemas de riqueza, sim, mas fazendo questão em, por meio de leis, obrigar a costumes sociais típicos de homens que não vinham para o continente africano para se tornarem africanos nem interessados estavam em convivências que aos seus próprios olhos e conforme os seus cânones de comportamento social os desautorizassem junto das populações sob o seu governo, isto segundo a conceção que haviam criado de infundir muito respeito e a maior submissão mantendo as devidas e respeitáveis distâncias.

Não se houve o português em África por iguais padrões de aversão pela pele do homem negro nem na generalidade se retraiu à responsabilidade dos filhos mestiços, tanto que em grande parte dos casos os educou a seu lado e à sua maneira e lhes deu o seu nome quando para tal existiu razão de indiscutível paternidade. Isto não o fizeram outros povos europeus vindos no rasto dos portugueses para África, embora muitos vestígios tenham deixado e continuem a deixar de só sentirem aversão pela mulher não europeia à luz do dia. Dessa “aversão” manifestada a “certas horas” falam claramente as estatísticas de países circunvizinhos. E, se não, vejamos: só na província do Natal existem mais mestiços do que em todo o território moçambicano, o que é estranho mas naturalíssimo, para quem se debruce com atenção sobre este tipo de suscetibilidades a que o colono português ficou indiferente, valha-nos isso que já não é pouco.

É um facto de que se não deve encarar sob um denominador comum os territórios de Portugal em África e os demais. Seria um erro, uma estupidez fazê-lo, tanto da parte dos políticos de países africanos já com estatuto independente como da parte dos políticos europeus que ao seu lado alinham para [sic] cruzada de descolonização.

É redondo engano pretender para Moçambique, Angola, etc., o mesmo modo de concessão de alvará de nação sem curar as condições em que os setores mais idóneos, sob o ponto de vista cultural, formam uma elite pronta a pôr uma máquina administrativa a funcionar eficientemente.

Com muita estranheza verificamos o beneplácito e todo o apoio a um homem como Holden Roberto no caso de Angola por parte de governos que deviam regular-se por mais arejadas informações e mais válidos conceitos: seja uma noção mais positiva das diferenças sociais que particularizam cada uma das áreas em que se fez profunda uma influência humano-portuguesa nos aspetos tão de exaltar que não deviam em nenhum caso ser ignorados pelos mais prestigiosos líderes africanos ou não africanos que no tal Holden Roberto alimentam um radical etnocentrismo que nunca poderá servir no bom sentido a liberdade e a independência que Roberto reivindica para uma Angola sob a sua chefia, uma chefia tanto mais negativa quanto se fundamenta num estatuto de angolano só para os que pertençam ao seu grupo racial, prova insofismável da pouca cultura do Roberto e de mal avisados que estão os seus padrinhos. Um Holden Roberto que quer fazer a História de Angola voltar atrás um século pelo menos é um caso de triste frustração. E aqui, novamente, achamos dever transcrever a lapidar frase de muita sabedoria proferida pelo homem público que é o Almirante Sarmento Rodrigues, nela nos valendo porque nela encontramos uma admirável síntese de quanto pensamos – alguns de nós – quanto devemos pensar – todos nós – para o melhor futuro de Moçambique:

“Moçambique não existiria com os seus filhos divididos. Não pode haver maiorias nem minorias, determinadas seja pelo que for. Nem maiorias absolutas nem minorias qualificadas e dominadoras. Nem comandos derivados de poder económico, nem de meras forças demagógicas”.

 

JOSÉ CRAVEIRINHA

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38. 02 de fevereiro de 1964, p. 13

 

CARTA [10]

 

Levava agitados os pendões da sua rebeldia. Eram os cabelos soltos na tarde morna, invocação de uma beleza delito de ser mulher. Amavam-na: o espaço à justa no ar em que o seu corpo ondulante se movia; a regra do jogo da adulação máscula dos olhos no encantamento da sensualidade; o impacto panfletário de uma boca de lábios famintos de cosmovisões delirantes de posse; os estáticos seres parados: ÁRVORES – vidas vegetais com raízes fincadas no seu lar de torrões – de ramos como braços na súplica de reter os significados voluptuosos dos cabelos esparsos na independência do sonho, a miragem das angústias obsessivas e a mordaça no clamor do vento sobre os zincos húmidos de lua no lirismo da plenitude obsidiante da cálida nudez percetível de um seio.

E agora: HOMENS – vidas ou apenas coisas?

 

FABULÁRIO

 

Nas mãos

o mesmo labor da arte

das abelhas no doirar dos favos

experimentamos na anatomia

feminina dos seios.

 

Que não importa ao nosso amor das coisas

o bater de asas nem a lírica

se não vivem o tesouro que exprime

o artesão na mágica do seu ofício

um pássaro todo rei do seu voo

e um poeta emigrado no próprio verso.

 

E no fantástico universo de um beijo

duas bocas em absorção

retornam à inocência do nojo

enquanto no paladar dos sucos transcende

a sabedoria natural das flores

mesmo sem o romântico labéu das rosas.

 

E além

da mulher a baioneta dos mamilos

na terra a lei de um enxame

na apanha do pólen disperso

esteja na razão dos livros interditos

acrescentado à psicologia

que faz um comício de insetos

coesos produzir o mel.

 

Viajo nesse trapo incandescente de nuvens ao sol-posto com um zénite nas mãos. Um relâmpago de prata semelha um punhal de aço fendendo o exterior. É um peixe que tenta evoluir a biologia sobre o cárcere de água. Calo em mim o resto da verdade inteira que se não aprende mas zumbe ao norte do tempo como se quisesse a fantasmagoria de um cutelo libertino de gume cor de madrugada, tangendo nas ancas de uma viola os sons virilizantes do pão da própria harmonia. E o galo é uma ave que já não atinge o céu voando mas comprometido no alerta do seu canto antes do holocausto. E não sobram asas que não as ganhe no seu corpo dia a dia o poeta, feliz ainda na humildade do artesão no êxtase da técnica das formas perfeitas, construindo na matemática dos dedos as próprias obras de arte. E assim as dádivas à casa e casinha; e a mesa, o banco, o vaso e o cesto, coisas úteis para os HOMENS crentes no seu chão.

E aqueles bardos que professam a sinceridade terrível do canto que vivem, como são medonhos na humildade de uma sirena audível para TODOS, nos limites da sua pátria e no arrebatamento da sua total humanidade circunstancializada.

 

JOSÉ CRAVEIRINHA

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39. 21 de fevereiro de 1964, p. 02

O DESEMPREGO E AS AGÊNCIAS DE COLOCAÇÕES

 

DOS SINDICATOS DE MOÇAMBIQUE

 

Em 1948, salvo erro, foram criadas várias agências de colocações adstritas aos respetivos sindicatos, as quais representavam um notável meio de “controle” do desemprego e uma oportuna forma de proceder criteriosamente à planificação do trabalho em Moçambique.

Porque é hábito já enraizado entre a população fazer das páginas dos jornais sua agência de colocações não é demais lembrar nem despropósito vincar bem o quanto tal costume briga com o que já está superiormente previsto para ser integralmente cumprido por todos, sejam trabalhadores, sejam entidades patronais.

A aplicação dos despachos que instituíram as agências de colocações viria em muitos casos sanear o problema de distribuição de trabalho nos diversos ramos profissionais abrangidos pelas referidas agências empregadoras, já que são seus objetivos a organização de listas de profissionais sem trabalho, bem como regular nas melhores condições, sob o ponto de vista moral e profissional, o recrutamento de profissionais dos diversos ramos de atividade, além de velar pelo cumprimento das disposições que disciplinem a admissão e despedimento de todos os que estando inscritos no Sindicato sejam sócios com direitos e regalias inerentes a essa qualidade, direitos e regalias que o Sindicato a que pertençam não poderá eximir-se de conceder ou de defender em todos os casos em que os interesses dos sócios não sejam devidamente respeitados conforme manda a lei.

Parece, pois, que não há razão nenhuma para que, tanto os que procuram empregar-se como os que procuram trabalhadores desta ou aquela atividade, saltem sobre quanto está regulamentado nesse mesmo sentido ao oferecer os seus préstimos por intermédio de anúncios insertos nos jornais. Há nesta norma consagrada pelo hábito que não pela lei um evidente conflito com a entidade sindical que nos seus quadros possui por força de lei um órgão fiscalizador de longo alcance na questão de recrutados e recrutadores e para cujo funcionamento está devidamente orçamentada uma verba nas receitas dos sindicatos.

Assim, nada mais lógico do que o devido respeito pela regulamentação, indo todos os desempregados inscrever-se no sindicato da respetiva especialidade a fim de lhes ser distribuído trabalho compatível com as aptidões que possuam. E então seria oportunidade de extinguir inteiramente os anúncios, pois em muitos casos deixaria de haver o caprichoso costume de quem procura um empregado referir-se a requisitos estranhos à competência profissional para dar preferência a indivíduos segundo condições que apenas demonstram uma escolha à base de critérios negativos.

Mesmo havendo ignorância – por parte de desempregados – da existência de agência de colocações subordinadas aos sindicatos, não se compreende o mesmo desconhecimento pelo lado das entidades patronais. Estas e os próprios sindicatos têm o dever de aplicar os regulamentos em função dos interesses da classe trabalhadora.

E quando isso não acontece em devido tempo e com o devido alcance lá diz o artigo 26.º do capítulo IV que a fiscalização “será exercida pela Direção dos Serviços de Administração Civil em colaboração com o Sindicato, competindo às autoridades administrativas e policiais o levantamento dos autos de transgressão e a aplicação da multa”.

Tem para todos os trabalhadores, empregados e desempregados, muito interesse e importância saber que existem agências de colocações que contam com verbas previstas nos orçamentos dos sindicatos para funcionamento do serviço de desempregados, devendo estes constar de listas a remeter à Administração Civil para estes serviços por sua vez regularem a corrente imigratória de trabalhadores para Moçambique, com essa medida obstando a que venham pedreiros havendo cá pedreiros desempregados; venham carpinteiros havendo aqui carpinteiros sem trabalho; entrem profissionais de tipografia existindo por cá profissionais de tipografia sem colocação, e assim nos mais variados ramos da atividades profissional.

Em vista de tudo o que antes ficou dito, em vez de anúncios nos jornais devem todos os desempregados inscrever-se nos respetivos sindicatos para que lhes seja dada colocação consoante as suas habilitações.

 

J.C.

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Notas

[1] Agostinho Caramelo (?-2006) foi um prolífico autor da literatura colonial de Moçambique. Nesta crónica, José Craveirinha refere-se ao romance Fogo, publicado em três volumes (1961, 1962 e 1964). Voltar ao texto

[2] Joaquim Montezuma de Carvalho (1928-2008) foi, para além de profissional de direito, um importante intelectual, pensador e crítico. Antes das independências, viveu longos anos em Angola e Moçambique. Voltar ao texto 

[3] José Rodrigues Júnior (1902-1990) foi um escritor de literatura colonial, jornalista e ensaísta português que viveu em Moçambique durante largas décadas antes da independência. Voltar ao texto

[4] Sobre o tema e a polémica em causa, cf. Francisco Topa – "Galinha à cafreal: José Craveirinha meio século depois". In África nossa, Áfricas deles: leituras de Marrocos, Cabo Verde e Moçambique. Porto: Sombra pela cintura, 2023, pp. 115-128. Voltar ao texto

[5] Sobre o tema, cf. Francisco Topa "Do domingo como espelho: Braga, Craveirinha, Pina e Lobo Antunes". In “Coisas que não levam a nada”: leituras portuguesas de literatura brasileira. Porto: Sombra pela cintura, 2023, pp. 149-159. Voltar ao texto  

[6] Craveirinha refere-se a Manuel Maria Sarmento Rodrigues (1899- 1979), que foi governador geral de Moçambique de 1961 a 1964, tendo anteriormente desempenhado o cargo de Ministro das Colónias (depois do Ultramar), de 1950 a 1955. Voltar ao texto

[7] O conto foi depois publicado em: CRAVEIRINHA, José (1997). Hamina e Outros Contos. Lisboa: Editorial Caminho. Voltar ao texto

[8] Manuel Simões Vaz (1887-1969), oficial de Cavalaria, fez comissões de serviço em São Tomé e Moçambique. Depois de deixar a vida militar dedicou-se ao jornalismo. Fundou em 15 de abril de 1926 o primeiro jornal diário de Moçambique, o Notícias. Desempenhou ao mesmo tempo diversas funções na Administração Pública. Voltar ao texto

[9] Trata-se de Nuno Bermudes (1924-1997), poeta, ficcionista e jornalista, natural de Moçambique, onde viveu até 1975. Voltar ao texto

[10] O texto em prosa foi incluído em: CRAVEIRINHA, José (1997). Hamina e Outros Contos. Lisboa: Editorial Caminho, pp. 29-30. Voltar ao texto