Aula 9. O final do Cenozóico. Evolução dos litorais durante o final do Cenozóico.

Introdução

O texto que se segue funciona como a primeira parte deste tema. Este texto corresponde, essencialmente, a uma introdução à “lição de síntese” sobre a evolução dos litorais durante o Cenozóico, em que é apresentado como exemplo o caso da plataforma litoral da região do Porto.

A variação climática no final do Cenozóico: o porquê da sua inclusão neste programa.

A nosso ver, os litorais nossos contemporâneos não podem ser vistos desligadamente da sua evolução ao longo do Quaternário. Isso acontece não só porque existem diversas marcas ou relíquias dessa evolução que ainda são patentes aos nossos olhos, mas também porque o passado é, frequentemente, a chave do presente e contém as explicações que clarificam muitos dos acontecimentos e da evolução do presente.

Desde há muito tempo que estes temas nos apaixonam. Todavia, actualmente, parece-nos que a sua relevância é ainda maior. Com efeito, as discussões existentes acerca do aquecimento global e do efeito de estufa têm tido um grande destaque nos media e entre a opinião pública. Parece-nos que, como geógrafos físicos, através do “recuo” que caracteriza aqueles que lidam com escalas cronológicas longas, poderemos ter um papel no esclarecimento da opinião pública e no equacionamento dos problemas que afectam a Terra enquanto sustentáculo da nossa existência individual e colectiva.

A visão que perpassa em alguns textos recentes, dos quais destacámos Riser (1999) e Williams (1998), tem, a nosso ver, um grande interesse pedagógico, na medida em que faz interagir a ciclicidade da hipótese de Milankovitch com a distribuição de continentes e oceanos, comandada pela tectónica de placas. Daí decorrem, como veremos, consequências importantes para a circulação oceânica.

Também a tectónica alpina, criando novos relevos, vai estimular o processo de acumulação de neves que se auto-alimenta, pelo menos até um certo ponto.

O próprio aumento da produtividade biológica dos oceanos e, até, a meteorização das rochas (acrescida devido à formação das cadeias de montanhas) vai consumir CO2 atmosférico diminuindo o papel do efeito de estufa e criando, assim, condições para o desenvolvimento das glaciações.

Sabemos que existem, ainda, muitas dúvidas, a este respeito. Não sabemos se alguma vez se saberá explicar todo este processo. Mas parece-nos que a discussão do mesmo pode ter um papel formativo importante e levar os estudantes a interessar-se por estes temas e, desta forma, a realizarem a aprendizagem da complexidade dos fenómenos e das interacções em jogo, bem assim como do carácter provisório que têm todas as explicações científicas .

É evidente que aquilo que lhes será dito é apenas uma introdução feita em linhas muito gerais, que poderá funcionar como “aperitivo” para uma disciplina de Geomorfologia do Quaternário que também existe no curriculum, mas cuja abertura em termos efectivos, uma vez que também é uma disciplina de opção, não parece provável a curto prazo, devido à sobrecarga de trabalho dos docentes da área de Geografia Física.

O complexo jogo das interacções na criação de condições de arrefecimento ao longo do Cenozóico

A propósito da variação do nível do mar vimos como o clima começou a sofrer uma tendência geral para o arrefecimento a partir de meados do Oligocénico (fig. 65).

Esse aspecto tem uma grande importância no registo sedimentar e pode ajudar a distinguir entre as formações terciárias e as quaternárias porque, de um modo geral, se passa de climas que permitem grandes alterações (com caulinite e gibsite) a formações aluviais de tipo torrencial, em que os conteúdos em caulinite e gibsite diminuem drasticamente.

Juntamente com esse arrefecimento aparecem oscilações que se vão tornando cada vez mais intensas durante a segunda parte do Pliocénico (curva da direita, respeitante ao registo encontrado em terra). Essa tendência acentua-se durante o Quaternário, com fortes variações climáticas (glaciações e períodos interglaciares, fig. 66) que se traduzem em importantes variações do nível do mar.

Aparentemente (M. Williams et al., 1998), a modificação da distribuição dos continentes e oceanos, decorrente da movimentação das placas litosféricas pode ter tido um papel muito importante no condicionamento da circulação marinha em volta da Antárctida.

No início do Cenozóico não havia gelo na Antárctida. As temperaturas deveriam estar à volta de 18°C nos mares envolventes. Porém, a subida da Austrália, em latitude, há 50 MA (fig. 173), bem como a abertura do estreito de Drake abriram uma passagem que permitiu a formação da corrente circumpolar. Esta passou a rodear completamente a Antárctida e a funcionar como uma barreira, impedindo as correntes quentes das latitudes baixas de atingirem estas latitudes. À medida que se vai dando o arrefecimento, a criação de mantos de neve vai propiciar o aumento do albedo e o processo vai intensificar-se por uma retroacção positiva.

Em meados do Miocénico havia já um inlandsis na Antárctida (comprovado pelos blocos transportados pelo gelo que se encontram no registo geológico).

O reforço dos contrastes térmicos, por sua vez, aumenta a velocidade dos ventos. Esse facto pode intensificar o upwelling e a produtividade biológica e, por essa via, aumentar a captação do CO2 pelos oceanos e reduzir a quantidade do CO2 existente na atmosfera.

No final do Miocénico há um arrefecimento que vai corresponder a uma regressão de 40-50m. Este processo é concomitante com a secagem do Mediterrâneo, com formação de enormes quantidades de evaporitos[1]. Este evento foi designado como “a crise de salinidade do Messiniano” e provocou uma diminuição geral da salinidade do mar em 6%. Esse facto permite que o congelamento da água do mar se pode dar a temperaturas mais altas. E este é mais um fenómeno que reforça o arrefecimento global, ao permitir a criação de mares gelados com um albedo importante.

O aparecimento das condições para as glaciações do Quaternário

Depois de um certo aquecimento no início do Pliocénico as condições climáticas deterioraram-se (fig. 174). No final do Pliocénico começam a encontrar-se blocos transportados pelo gelo incluídos no registo sedimentar do hemisfério Norte, o que significa que as glaciações até aí confinadas ao hemisfério sul e à Gronelândia[2] começam a estender-se para as grandes áreas continentais do hemisfério Norte.

Esse facto marca o início do Quaternário. É possível que o fecho do estreito do Panamá tenha contribuído para o desencadeamento da corrente do Golfo. Ora, o aporte de águas aquecidas para latitudes elevadas tem como consequência uma intensificação da queda de neve, o que tem consequências para o aumento do albedo e para a criação de retroacções positivas para a glaciação.

Há cerca de 2,4 MA (fig. 65, repetição) já havia mantos de gelo nos continentes do hemisfério Norte. A partir daí observam-se alternâncias rítmicas com um período próximo de 41.000 anos. Essa situação de oscilações frequentes e relativamente pouco intensas vai até cerca de 0,9 MA. A partir daí as oscilações frias tornam-se muito mais intensas e o respectivo período passa a rondar os 100.000 anos. Essas variações, que são deduzidas da análise do conteúdo em isótopos de oxigénio dos sedimentos dos fundos marinhos[3], vêm comprovar a influência que as variações na órbita da Terra, e as consequentes variações da quantidade de calor que é recebida nos diferentes locais, devem ter na determinação das variações climáticas do passado.

Na figura 175 é possível analisar os diferentes ciclos que podem influir neste processo: a excentricidade da órbita, com um período de 100.000 anos, a obliquidade da eclíptica, com um período de 41.000, e a precessão dos equinócios, cuja periodicidade pode variar entre 23.000 e 19.000. A conjugação dos diferentes ciclos produz uma curva da variação da insolação, em Julho, entre 60 e 70° de latitude Norte, que se adequa muito bem às variações de temperatura efectivamente verificadas.

Parece evidente, todavia, que as influências exteriores não podem explicar tudo. Doutro modo, os ciclos glaciação/interglaciar teriam existido ao longo de toda a história da Terra, o que não aconteceu (cf. fig. 63). Por outro lado, as variações na insolação são muito pouco intensas e é bastante discutido qual o mecanismo pelo qual são amplificadas de molde a originar as variações climáticas com que nos deparamos durante o Quaternário.

Uma das hipóteses mais recentes a esse respeito explora uma ideia já relativamente “antiga” segundo a qual há uma correlação entre as manchas solares e períodos de arrefecimento climático. A explicação para essa correlação poderá estar no facto de que os raios cósmicos produzem iões que, juntamente com as pequenas partículas da baixa atmosfera podem criar as bases para o desenvolvimento de nuvens baixas. Estas têm como resultado final arrefecer a Terra.

Por isso, um factor que aumente a intensidade dos raios cósmicos provocará um arrefecimento. Ora, as manchas solares relacionam-se com tempestades magnéticas e reforçam a magnetosfera que, por sua vez protege a terra dos raios cósmicos. Este processo complexo poderá explicar por que motivo um menor número de manchas solares (por exemplo, o mínimo de Maunder que coincidiu com a Pequena Idade do Gelo) acaba por desencadear um processo de arrefecimento (Lomborg, 2002).

Além disso, o arrefecimento da Terra não se prolonga indefinidamente. As temperaturas nunca desceram mais do que 5-9° abaixo do actual. Isto significa que há um feed-back negativo a partir de certos limiares. Com efeito, se a temperatura descer muito, a evaporação reduz-se e a queda de neve também, o que pode contribuir para um balanço negativo de acumulação para os glaciares envolvidos, diminuir a intensidade do albedo e provocar uma diminuição da área glaciada ou mesmo o seu desaparecimento.

Com efeito, há uma notória dissimetria no estabelecimento de uma glaciação: a entrada numa época fria é muito lenta, mas a saída da glaciação é muito rápida (fig. 66, repetição), o que mostra a existência de um mecanismo de feed-back negativo que controla a deglaciação. No processo de arrefecimento funciona um feed-back positivo. Esta circunstância desenha uma evolução em forma de “dente de serra” que é típica da evolução climática durante o Quaternário (fig. 66, repetição).

É muito interessante pensar nas relações existentes entre a evolução climática durante o fim do Würm e a situação da terra relativamente ao ponto da sua órbita em que se verifica o perihélio.

Com efeito, actualmente o perihélio situa-se no início de Janeiro. Significa isso que a grande obliquidade dos raios solares para o hemisfério Norte é compensada por uma maior proximidade do Sol. Por isso, os invernos do hemisfério Norte não são muito frios. Porém quanto ao hemisfério Sul, é preciso pensar que o verão austral acontece quando a Terra está no perihélio e o inverno austral quando ela está no afélio. Ora isso vai representar verões tendencialmente mais quentes e invernos mais frios do que os do hemisfério Norte.

Justamente, a partir de 11.000 BP a situação estava invertida. Deste modo, o verão do hemisfério norte acontecia com a Terra no perihélio: esse facto acelera a fusão dos glaciares do nosso hemisfério. A discussão detalhada desta evolução pode ser seguida em Riser (1999, p. 202 e seguintes) e é muito interessante porque explica, entre outras coisas, as variações climáticas que se sucederam no Sahara no final do Würm e no início do Holocénico.

Limites e métodos de estudo do Quaternário

Os limites cronoestratigráficos utilizados para o Quaternário variam bastante consoante os autores. Tem sido muito referido o limite de 2,4 MA (Riser, 1999). Porém, já em Williams et al., (1998) o limite proposto é de 1,8 MA. Como se vê na figura 65, ambas as hipóteses são defensáveis, embora Riser defenda que o limite de 2,4-2,5 MA é mais utilizável para o estabelecimento de correlações inter-regionais porque corresponde a um importante episódio frio e seco que está amplamente documentado.

E dado o avanço dos conhecimentos neste domínio, é provável que, no futuro, nos possamos inclinar por uma ou por outra com base em novos dados que hoje ainda não se encontram ao nosso alcance….

Na figura 176 podemos observar a proposta de Riser (1999) para cronologia do Quaternário. Já na figura 179 encontramos uma cronologia pormenorizada sobre o Tardiglaciário e o Holocénico. Parece-nos muito importante que sejam fornecidas aos estudantes tabelas deste tipo que lhes permitam orientar-se no meio das datações e tentativas de correlação que se encontram na literatura especializada.

É importante referir alguns dos métodos que podem ser utilizados no estudo do Quaternário (datações por potássio-árgon, C14, termoluminescência e luminescência estimulada opticamente[4], paleomagnetismo, dendrocronologia, estudo das varvas, etc.). É sobretudo importante dizer que eles se aplicam a horizontes cronoestratigráficos diferenciados e que alguns deles ainda apresentam um grau de insegurança apreciável, para além dos custos elevados.

Porém, dada a complexidade do estudo do Quaternário e a possibilidade de haver recorrência de fácies é evidente que toda a investigação acaba por se confrontar com a necessidade de obter datações.

Evolução do clima durante o Pleistocénico médio

Existe um grande contraste entre a vegetação e a fauna fini-terciária e a do final do Quaternário. Essa alteração fez-se ao longo do tempo, à custa de numerosas oscilações. Porém, uma fase fria e seca cerca de 2,4-2,5MA, bem documentada em todo o mundo (Riser, 1999) estabelece definitivamente os regimes climáticos típicos do Pleistocénico e por isso é usado como limite em muitos locais.

Um importante episódio frio e seco foi assinalado na China, através de um loess excepcionalmente espesso e grosseiro. Na mesma altura, o planalto do Tibete parece ter sido soerguido algumas centenas de metros, o que mais uma vez mostra a interferência entre fenómenos climáticos e tectónicos na produção de eventos geomorfológicos documentados no registo sedimentar.

As fases interglaciares do Pleistocénico inferior e médio correspondem a climas quentes com uma vegetação densa. Uma vez que as condições eram essencialmente biostáticas havia uma redução acentuada dos fenómenos erosivos em comparação com os períodos frios, em que, quer a ablação produzida pelos glaciares quer as condições periglaciares existentes na sua periferia originavam quantidades muito apreciáveis de sedimentos detríticos transportados pelos rios até ao litoral.

Esse facto terá produzido mudanças importantes na tipologia dos litorais que disporiam de uma maior quantidade de elementos grosseiros durante os períodos frios e de materiais mais finos e em menor quantidade durante os períodos interglaciares.

No interglaciar Mindel-Riss (estádio 11 ou Holstein, fig. 176) teria havido um clima bastante mais quente do que o actual, o que se traduziria em praias fósseis situadas a altitudes que atingiriam os 20m nas regiões estáveis. Pensa-se que essas temperaturas anormalmente altas para um interglaciar poderiam explicar-se, tal como no caso do interglaciar actual (Holocénico) por uma fraca obliquidade do eixo da Terra, um perihélio no Outono e uma fraca excentricidade da eclíptica.

Estas condições teriam permitido uma fusão parcial da calote da Gronelândia e da parte ocidental da Antárctida.

O Pleistocénico recente: o Eemiense

No interglaciar Riss-Würm (estádio 5, Emiense), o nível do mar seria 4-5m mais alto que o actual, nas zonas estáveis. A curva isotópica da figura 178 mostra que terá havido 2 máximos de temperatura (e portanto do nível do mar, ver nota supra) à volta dos 125.000 BP, separados por uma ligeira regressão. A mesma figura permite dizer que o nível do mar, nessa altura, terá atingido cotas ligeiramente superiores à actuais.

O Pleistocénico recente: a última glaciação

O crescimento das calotes de gelo ter-se-á iniciado por volta de 115.000 BP. Na figura 178 é possível identificar diversas fases, sempre com o desenho típico de “dente de serra”, mas com uma tendência geral para um aumento do conteúdo em O18, o mesmo é dizer, para o estabelecimento de uma glaciação. É possível identificar diferentes fases (fig. 177) a partir das quais foram definidos os estádios isotópicos que correspondem, actualmente, a termos correntes no domínio do Quaternário, cujo sentido é necessário que os estudantes apreendam para poderem descodificar a literatura recente sobre este assunto.

Dentro das glaciações o clima não foi uniforme. Assim, é possível identificar os chamados “estadiais”, que correspondem a fases de frio intenso e os interestadiais, que são períodos frescos, em quer o clima sofre uma notória suavização.

Também durante o Tardiglaciar foi possível identificar ciclos sob a forma de “dentes de serra” (fig. 180). Este ciclos têm colocado muitos problemas aos investigadores porque dado o período de duração relativamente curto, não podem ser associados às variações orbitais.

Os eventos de Dansgaard-Oeschger (Williams et al., 1998) duram entre 1.000-3.000 anos. Podem corresponder a mudanças de 8° na temperatura média.

Os eventos de Heinrich correspondem a uma escala de 5.000-12.000 anos. Correspondem a conjuntos de interestadiais progressivamente mais frios que terminam numa imensa descarga de icebergs.

Com efeito, a possibilidade de obter uma melhor resolução no estudo e na datação destes fenómenos, permitiu perceber que cada ciclo pode decompor-se numa fase de arrefecimento progressivo em que o tamanho da calote aumenta. No estádio final desse crescimento acontece uma libertação maciça de icebergs que induz um arrefecimento à superfície da água do mar e diminui a precipitação no continente próximo. Assim, esta fase fria é seguida por um rápido aquecimento que inicia um novo ciclo.

O máximo de extensão dos glaciares teve lugar entre 21.000-17000 BP.

O Tardiglaciar e o Holocénico

No período compreendido entre 13.000 e 12.000 BP verifica-se um aquecimento em que as temperaturas atingem valores quase semelhantes às do Holocénico (Bølling-Allerød, fig. 180) com um curto período frio de permeio (Dryas antigo). Nessa altura, no hemisfério norte a insolação, durante o verão era superior à actual e continuou a aumentar até a um máximo em 11.000 BP. O nível do mar seria cerca de 40 m inferior ao nível actual (fig. 69).

O Dryas recente interrompe este período de aquecimento. O Dryas recente durou 1000 anos e implicou avanços dos glaciares escandinavos da ordem de 30-40km. O nível do mar tornou a descer para cotas de -60m (fig. 69).

Foi este o último período frio. Depois dele inicia-se o Holocénico. Aos 10000 BP, o Atlântico já não tinha gelo à superfície, durante o inverno. As últimas moreias escandinavas têm datações de 9.200 BP.

Durante o Holocénico as oscilações climáticas são mais frequentes e muito menos intensas do que nos períodos anteriores (fig. 180).

Algumas fases de arrefecimento coincidem com fases de libertação de icebergs no Atlântico Norte, segundo uma frequência de 1430 anos. O último evento teria sido a Pequena Idade do Gelo (1450-1890).

Os litorais durante o final do Cenozóico: enquadramento geral e problemas metodológicos

Como acabámos de ver, à complexidade da evolução dos litorais, anteriormente tratada, dada a sua situação de interface, há que juntar o diastrofismo, que geralmente tem lugar em faixas de transição entre o continente e o oceano (fig. 74), as variações climáticas que aconteceram nos últimos tempos do Cenozóico e as variações eustáticas delas decorrentes.

Na figura 181 podemos ver um modelo dos diferentes tipos de terraços a que as variações cenozóicas do nível do mar podem conduzir. Já vimos que o processo de arrefecimento climático e de constituição dos inlandsis levou a que no final do Miocénico tenha havido um arrefecimento que vai corresponder a uma regressão de 40-50m. A fusão total dos glaciares da Antárctida e Gronelândia provocaria uma subida do nível do mar da ordem dos 65-80m (A. Hallam, 1992). Juntando a esses valores os 120-140 m de variação do nível do mar deste o máximo do Würm até à actualidade, obtém-se um valor entre 185 e 220m de diferença entre o nível mais alto e o nível mais baixo do mar dentro do Cenozóico. Quer isto dizer que, contando apenas com as variações eustáticas, podemos encontrar restos de litorais cenozóicos separados por essa diferença de cotas.

Como estamos, actualmente, num período interglaciar, portanto caracterizado por um nível relativamente alto do mar admite-se que, de acordo com os valores acima referidos, poderemos ter antigas linhas de costa submersas até uma profundidade de 120-140m. As linhas de costa acima do nível actual do mar corresponderiam a altitudes de 65-85m, isto é à altura de água que foi subtraída aos oceanos devido à formação dos inlandsis da Antárctida e da Gronelândia. Por isso, admitindo que houve, durante o Terciário, um processo de crescimento dos inlandsis, mesmo nas áreas ditas “estáveis”, a tendência é para que os depósitos mais antigos se situem a cotas mais elevadas. Como é óbvio, se aceitarmos como correctos os valores de 65-85m para a espessura da camada de água subtraída ao mar desde o Miocénico o critério para essa estabilidade será que os depósitos do Miocénico inferior não devem ultrapassar os 65-85m.

Significa isto que, quando se ultrapassa um valor dessa ordem de grandeza, começa a haver uma grande probabilidade de a área em questão ter sofrido um levantamento tectónico (fig. 182). A esse respeito, a análise da curva da Fairbridge (fig. 183) torna-se bastante esclarecedora: os pontos mais altos da curva apresentam uma tendência persistente para a descida, o que poderá relacionar-se com o efeito combinado do eustatismo e do diastrofismo.

Por exemplo, na Calábria existem oito linhas de costa quaternárias que se desenvolvem até 177m de altitude (Riser, 1999), o que significa que se trata de áreas que estão a sofrer uma subida.

Como seria de esperar isso sucede em muitas outras áreas. Se analisarmos a distribuição dos depósitos quaternários nas colunas estratigráficas de algumas cartas geológicas portuguesas, ou mesmo no trabalho de síntese de Ribeiro et al. (1979) apercebemo-nos que as formações quaternárias mais antigas (Siciliano I) se encontram a altitudes de 100-110. Esse facto de per si já nos indica que elas estão muito provavelmente soerguidas. Mas se isso é assim, então como utilizar as altitudes para caracterizar e fazer a cronologia dos depósitos? É óbvio que a ideia das praias levantadas que se podem seguir do Minho até ao Algarve, que foi referida logo no início deste programa cai pela base. Com efeito, se os depósitos estão soerguidos, então é improvável que o seu soerguimento seja perfeitamente homogéneo ao nível de todo o país. Poderá haver algumas homogeneidades, sim, mas apenas a nível local, quanto muito regional e nunca a nível do país.

Na plataforma litoral da região do Porto, os depósitos presumivelmente pliocénicos situam-se a altitudes de 124m. Como, em princípio, de trata de depósitos formado no Pliocénico, quando o nível eustático já tinha descido algo em relação à situação pré-glaciar (o inlandsis da Antárctida existiria desde meados do Miocénico, cf. Williams et al., 1998) o seu soerguimento poderá ser avaliado da seguinte forma:

Admitindo que a fusão dos inlandsis corresponderia a uma coluna de água de 82 m (Williams et al., 1998) e que, no Pliocénico uma espessura entre 60 e 40m já tinha sido subtraída aos oceanos. Abstraindo dos efeitos tectono-eustáticos, teríamos:

124 - (82-40)=82

ou 124 – (82-60)=102m

Isto significa uma subida no mínimo de 82m e no máximo de 102m para os depósitos de fácies planície aluvial litoral (portanto próxima do nível de base) da região do Porto. Essa subida terá que ser explicada essencialmente pelo diastrofismo.

Porém, também há sectores litorais a sofrer subsidência (fig. 75). Como vimos atrás, a região de Veneza está a sofrer subsidência, de tal forma que o Eemiense, que geralmente aparece entre 2 e 8m, se encontra aqui a uma profundidade de –70m (Dawson, 1992).

Como é evidente, os depósitos emersos das áreas “estáveis” ou aqueles que se encontram soerguidos eram os únicos que eram facilmente observáveis. Os depósitos cenozóicos em vias de afundimento deverão estar embutidos uns nos outros, sendo os mais antigos os que se situam a maior profundidade. Por isso, só por sondagens podem ser observados. É perfeitamente natural, por isso, que a cronologia do final do Cenozóico das faixas litorais tenha sido estabelecida com base em depósitos essencialmente soerguidos…

Com efeito, as designações “clássicas” para o final do Cenozóico (Calabriano, Siciliano, Milaziano, Tirreniano) foram definidas no Mediterrâneo, área muito activa tectonicamente, e onde os depósitos do Cenozóico estão deformados. No fundo, a atribuição “crono-estratigráfica” baseada nos critérios do eustatismo foi um grande equívoco, de que sofreram, durante décadas, os estudos geológicos e geomorfológicos sobre o Cenozóico do litoral.

Daí a reflexão de Ferreira (1983) a propósito da hipótese de C. Teixeira sobre a submersão das rias galegas: “Nesse artigo (1944: Tectónica plio-pleistocénica do noroeste peninsular) o autor debate-se com uma evidente contradição que consiste em tentar provar a existência de movimentos tectónicos recentes com base na presença ou ausência de praias e terraços, datados pela sua altitude “.

Todavia, o eustatismo existe, como vimos na altura própria e também no início desta aula.

Se reflectirmos sobre a tendência geral de subida dos continentes relativamente aos oceanos devida a razões de ordem isostática (fig. 74) é possível que, em alguns casos, as taxas de subida se assemelhem (Barbosa e Barra, 2000) e que, por isso, depósitos aproximadamente da mesma idade possam estar a altitudes semelhantes.

Porém, não podemos esquecer a existência de uma tectónica diferencial. Como veremos no final desta aula, dedicada ao exemplo do estudo da plataforma litoral da região do Porto, os fenómenos de neotectónica não podem ser esquecidos e a área em questão teve, aparentemente, um comportamento diferencial ao longo do Cenozóico.

Quando se está em situação de levantamento tectónico, como é evidente, a erosão predomina sobre a acumulação. Por isso, alguns dos depósitos podem ter sido destruídos. A sequência dificilmente estará completa (vide Ferreira, 1983). Além disso, os depósitos geralmente são muito pouco espessos. Trata-se, geralmente, de pequenos afloramentos, muitas vezes remexidos, com uma interpretação que tem que ser muito fina e cautelosa, por causa das recorrências de fácies e da incidência da neotectónica.

Naturalmente que a melhor forma de compreender este puzzle passa pela datação absoluta dos depósitos. Mas as técnicas disponíveis não se podem aplicar a muitos deles. Por exemplo, no litoral do Noroeste da Península, a acidez dos solos fez desaparecer qualquer vestígio de carbonatos. Apenas métodos do tipo da termo-luminescência podem ser empregues… e muitas vezes não existem nestes depósitos, frequentemente cascalhentos, areias com os requisitos necessários para esse tipo de datação.

Todavia, em certos locais privilegiados, uma subida tectónica intensa criou uma espectacular escadaria de terraços de coral. Um caso muito conhecido é o da península de Huon na Nova Guiné (figuras 184 e 185, Pethick 1984). Esses terraços podem ser datados através do método do Urânio-Tório (que permite datações até a um limite de 500.000 anos). Adicionalmente, existem dados de O18 (http://www.ngdc.noaa.gov/paleo/coral/newguinea.html) que permitem representar as variações de O16/O18 nos recifes de coral fóssil e também no coral vivo.

A datação dos diversos níveis de terraços, juntamente com o conhecimento de alguns pontos chave de uma curva bem estabelecida de variação do nível do mar permitiu calcular uma curva do levantamento tectónico (fig. 185, C) e deduzir, a partir daí, uma curva derivada da variação do nível do mar durante os últimos 400.000 anos. Isto é: foi possível separar a movimentação tectónica e o eustatismo, e isso corresponde à resolução de um problema que afectou os estudiosos destes temas durante décadas, desde que se teve consciência do interesse do estudo dos terraços marinhos e das interferências quase inextrincáveis entre tectónica e eustatismo na sua formação.

Noção de terraço. Formação dos terraços do litoral

Segundo Moreira (1984), “terraço marinho é um depósito de sedimentos litorais (de praia ou de plataforma) que aparece a um nível diferente do que foi construído, devido a variações do nível do mar”. Nesse sentido, os terraços submersos da figura 181 também são terraços marinhos.

A figura 186 mostra, de forma esquemática, as fases de formação de um terraço marinho:

  1. Período interglaciar: aumento do declive da vertente devido ao escavamento feito pelo mar na sua base. Formação de uma plataforma de erosão com uma cobertura sedimentar de origem marinha;
  2. Fase de glaciação: Regressão marinha. O depósito marinho é coberto por uma formação solifluxiva de origem continental;
  3. Novo período interglaciar: a transgressão marinha faz recuar a vertente criando uma nova arriba. O antigo depósito marinho foi transformado num terraço coberto por um depósito solifluxivo.

 

A figura 187 mostra uma fotografia de uma situação idêntica à descrita no esquema. Este tipo de ilustração parece-nos muito interessante porque permite uma apreensão visual imediata de um fenómeno relativamente complexo. Além disso, este esquema é particularmente útil para a compreensão do que se passa na plataforma litoral da região do Porto, de que nos ocuparemos noutro local.

Bibliografia utilizada

ANDERSEN, B. G.; BORNS, H. W. JR., (1994) - The Ice Age World, Scandinavian University Press, Oslo, 208 p.

BARBOSA, B. A. P. S., e BARRA, A., (2000) – Problemática da cartografia dos depósitos quaternários, Estudos do Quaternário, nº 3, APEQ, Lisboa, p. 15-20

BIRD, E. C. F., (2001) – Coastal Geomorphology. An introduction, J. Wiley & Sons, 322 p.

DAVEAU, S., (1993) - A Evolução Quaternária da Plataforma Litoral, O Quaternário em Portugal. Balanço e Perspectivas. Lisboa, APEQ, Colibri, p. 35-41.

FERREIRA, A. B. (1983) - Problemas de evolução geomorfológica quaternária do noroeste de Portu­gal, Cuadernos do Laboratorio Xeoloxico de Laxe, nº 5, VI Reunion do Grupo Español de Traballo de Quaternario, A Coruña, p. 311-330.

FERREIRA, A. B., (1993) – As rañas em Portugal: significado geomorfológico e estratigráfico, O Quaternário em Portugal. Balanço e Perspectivas. Lisboa, APEQ, Colibri, p. 7-15.

FRANCO, H., (1998) - Millennial scale climate variability: A low-order model relating Heinrich and Dansgaard-Oeschger events, http://es.epa.gov/ncer_abstracts/fellow/98/franco.html (arquivo encontrado em Novembro de 2002).

LOMBORG, B., (2002) – The skeptical environmentalist - measuring the real state of the World, Cambridge Univ. Press, 515 p.

MOREIRA, M.E.S.A., (1984) - Glossário de Termos Usados em Geomorfologia Litoral, Estudos de Geografia das Regiões Tropicais, Nº 15) - C. E. G., Lisboa, 167 p.

PETHICK, J. - (1984) - An Introduction To Coastal Geomorphology, London, Edward Arnold, 260 p.

RIBEIRO, A. et al., (1979) - Introduction à la Géologie Générale du Portugal, Serviços Geol. Portu­gal, Lisboa, 114 p.

RISER, J., (1999) - Le Quaternaire; Géologie et Milieux Naturels, Dunod, Paris, 320 p.

WILLIAMS, M. A.J., DUNKERLEY, DE DECKKER, D. L. P., KERSHAW, A. P., STOKES T. J., (1998) - Quaternary Environments, 2ª ed. Edward Arnold, London, 329 p.

 

http://earthobservatory.nasa.gov/Library/Giants/Milankovitch/milankovitch_2.html

http://es.epa.gov/ncer_abstracts/fellow/98/franco.html

http://www.ngdc.noaa.gov/paleo/coral/newguinea.html

http://www.ngdc.noaa.gov/paleo/pubs/tudhope2001/tudhope.html

http://www.usd.edu/esci/Figuras/BluePlanet.html

Aula Prática:

Análise sedimentológica (granulometria e morfoscopia) de depósitos fluviais, de terraços marinhos e de depósitos solifluxivos.

Figura 173: Reconstrução do padrão das principais correntes marítimas durante o mais recente ciclo de desintegração continental.

 

 

Figura 174: Reconstituição das temperaturas de superfície dos oceanos nas altas latitudes setentrionais durante o Cenozóico. As temperaturas elevadas do início do Cenozóico deram, gradualmente, origem a condições frias durante o Quaternário.

Figura 65 (repetição): Variação climática no final do Cenozóico (extraído de Andersen e Borns, 1994)

Figura 66 (repetição): Variação climática e do nível do mar durante o Quaternário (fig. extraída do site http://www.soest.hawaii.edu/coasts/csrg1.html)

 

Figura 175: Os ciclos de Milankovitch

Figura 176: Proposta de Riser (1999) para uma cronologia do Quaternário

Figura 177: Os estádios isotópicos: os últimos 140.000 anos

 

Figura 178: Curva isotópica para a Gronelândia. Dados extraídos de ftp://ftp.ngdc.noaa.gov/paleo/icecore/greenland/summit/grip/isotopes/gripd18o.txt

 

Figura 179: Cronologia do Tardiglaciar e do Holocénico

Figura 180: Curvas isotópicas do Tardiglaciar e do Holocénico

 

 

 

 

Figura 181: Evidência de variações do nível do mar: terraços marinhos emersos e submersos

Figura 182: A interacção entre o eustatismo e a isostasia podem produzir praias levantadas que se estendem para além da amplitude dos níveis eustáticos

 

Figura 183: A curva de Fairbridge sobre as variações do nível do mar durante o Quaternário e a sua disposição em escadaria Figura 1

 

 

 

 

Figura 184: Os terraços de coral na Península de Huon (Nova Guiné)

 

Figura 185: A separação entre a curva eustática e a subida tectónica na península de Huon (Nova Guiné)

 

Figura 186: Processo de desenvolvimento de um terraço marinho

Figura 187: Fotografia da situação descrita na figura 186.

 



[1] Aparentemente, a quantidade de sais precipitados corresponde a cerca de 40 vezes a quantidade total de sal que o Mediterrâneo normalmente contém, o que significa que o processo foi um processo continuado, que se desenrolou durante muito tempo (M. Williams et al., 1998).

[2] A criação dos glaciares na Gronelândia parece ter tido início no final do Miocénico, há cerca de 7 MA (M Williams et al., 1998).

[3] A água é constituída por 2 isótopos de oxigéno: O16 e O18. o O16 é mais leve e, por isso, evapora-se mais facilmente. Durante os períodos glaciares há uma grande quantidade de água retida sob a forma de gelo nos continentes. Significa, por isso, que os oceanos vêm a sua água enriquecida no isótopo mais pesado. A variação da relação entre o O16 e o O18 incluídos nos organismos marinhos, dá indicações sobre a temperatura e sobre a quantidade de água retida nos glaciares, e portanto, sobre o nível do mar. Uma mudança de 0,11‰ no carbonato dos foraminíferos plantónicos representa uma variação de 10m no nível do mar.

[4] Termoluminescência e luminescência estimulada opticamente: os minerais naturais têm quantidades vestigiais de radionucleídos que libertam radiações alfa, beta ou gama que ionizam os átomos do mineral, libertando electrões que ficam presos nas imperfeicões da rede cristalina.

O aquecimento do mineral liberta esses electrões e origina uma emissão luminosa que é proporcional à quantidade de energia recebida pelo mineral. Em 1985 descobriu-se que em vez do aquecimento poderia submeter-se o mineral a uma radiação electromagnética. Esse processo designou-se como luminescência estimulada opticamente. Neste processo mede-se a dose de radiação acumulada depois da última exposição aos raios solares. Conhecendo a dose anual a que o sedimento estaria sujeito, é possível saber a respectiva idade (Riser, 1999).