Nesta aula abordaremos os locais onde os rios
encontram o mar - estuários e deltas e também as lagunas. Todos
estes ambientes têm em comum a existência de pântanos e o
facto de conterem água doce ou salobra na proximidade do litoral.
Trata-se do sector terminal dos rios,
até onde o canal fluvial é percorrido pelas correntes de
maré. Muitas vezes os estuários correspondem a sectores alargados
dos cursos de água, o que faz sentido se pensarmos que grande parte dos
litorais nossos contemporâneos são litorais de submersão
(fig. 59), que resultaram da invasão marinha de vales fluviais que,
durante as glaciações, sofreram um escavamento importante, a
favor de uma descida do nível do mar estimada entre 120 e 140m (aula 5).
É o caso também do Rio Douro, em que o fundo do respectivo
paleovale, junto à foz, está a 50 m de profundidade (A. Carvalho,
1988).
Como é óbvio, a amplitude das marés
(aula 4) é determinante na caracterização dos
estuários. No caso dos estuários micromareais a
penetração da maré faz-se até pouca distância
da costa. No caso dos estuários macromareais acontecerá o
contrário. Se a acção das marés enfraquece, outras
acções (ondulação, deposição de
sedimentos continentais) podem tornar-se dominantes.
Segundo R. Paskoff (1985) a
definição de estuário implica uma ampla abertura sobre o
mar. Ora, esta abertura só poderá manter-se se houver um
equilíbrio entre os sedimentos transportados pelo rio e a respectiva
capacidade de escoamento. Além da amplitude das marés, as
variações relativas do nível do mar, o clima reinante na
bacia vertente e o respectivo grau de florestação, controlando o
tipo e quantidade de sedimentos, acabam por ter um papel importante na
caracterização dos estuários.
Pode dizer-se que estes têm sofrido, de
um modo geral desde que se atingiu o máximo da transgressão
flandriana, há 5-6000 anos, um processo de colmatação que
é extensivo, como veremos, a muitas lagoas litorais.
As duas forças essenciais em
acção nos estuários são a força da corrente
fluvial e a força das marés.
A importância da corrente fluvial
depende, como é evidente, do seu caudal e da velocidade com que as
águas vêm animadas. Em período de cheia, por exemplo, as
plumas túrbidas produzidas pelos rios podem seguir-se até
distâncias importantes, no seio do oceano (ver figs. 16 e 146).
A corrente fluvial é contrariada pela
força da maré enchente. Pelo contrário, ela vai sofrer um
reforço assinalável pela corrente da vazante.
Ao chegar ao estuário a força da
corrente fluvial amortece-se, por diminuição do declive e pela
resistência oferecida pela água do mar e acaba por anular-se.
A maré enchente penetra ao longo do
canal fluvial até distâncias variáveis consoante o caudal
do rio e a amplitude das marés. Por vezes, a subida da maré ao
longo de um estuário origina o fenómeno do macaréu (fig.
56).
À medida que a maré enchente vai
avançando ao longo do rio, a sua amplitude vai-se reduzindo, até
desaparecer completamente.
No máximo da maré alta, o
nível do mar é mais elevado que o nível da água no
rio. Daí a penetração da água do mar ao longo do
rio, ou enchente.
Pelo contrário, no máximo de
maré baixa, o nível da água é bastante mais alto no
rio que no mar, porque à água do rio se juntou a água a
água marinha que nele penetrou durante a enchente.
Por isso, a favor desse desnível, se
faz uma descarga, durante a vazante, que pode atingir velocidades elevadas.
Na figura 148 pode ver-se como varia a
velocidade no estuário consoante o nível da maré. Quer
durante a maré baixa quer durante a maré alta não
há corrente alguma e a água está praticamente parada.
É nos momentos em que a maré está no seu ponto
médio que se atingem as velocidades mais elevadas. Este facto tem, como
é óbvio, importantes consequências em termos de
sedimentação, já que a ausência de corrente durante
a maré alta vai produzir a deposição de sedimentos
transportados em suspensão ou resultantes da floculação
das argilas com origem fluvial em contacto com as águas marinhas ricas
em iões.
Se, numa situação de cheia
coincidirem marés altas vivas e uma sobre-elevação
meteorológica do tipo storm surge (fig. 31),
o rio não consegue escoar água que transporta. Esta vai-se
acumulando, e fazendo subir o respectivo nível junto à foz e
originando cheias importantes.
Esse fenómeno pode ser particularmente
intenso em rios que se mantenham encaixados até perto da foz, porque num
vale estreito a cheia tem tendência a subir mais rapidamente.
É justamente isso que acontece com o
Douro e daí o temor, para as populações ribeirinhas do
Porto e Gaia, de que os períodos de cheias coincidam com marés
vivas.
A penetração da maré num
estuário faz-se através de uma maré de salinidade
(Paskoff, 1985) que normalmente fica muito aquém da maré
puramente dinâmica.
Com a água do mar é mais densa,
existe a tendência para que a água doce fique a sobrenadar a
água salgada. Porém há sempre alguma mistura. Mas a
intensidade dessa mistura depende das velocidades relativas e volumes das duas
correntes.
Designam-se por correntes residuais as
correntes de mistura entre as águas do rio e do mar (J. Pethick, 1984).
A forma como se organizam as correntes
residuais nos estuários depende da relação entre as
quantidade de água marinha e fluvial. Há 3 tipos de
situações (J, Pethick, 1984):
Nos estuários de cunha salina uma
pequena amplitude de maré coexiste com um grande caudal fluvial. Uma vez
que as águas do mar são mais densas que as águas do rio,
elas insinuam-se sob as águas fluviais constituindo uma cunha salina
(fig. 149). A mistura entre a água do rio e do mar é pouco
intensa. Como as correntes residuais são fracas a carga de fundo do rio
dificilmente é transportada até ao mar, parando junto do
vértice da cunha. A pequena amplitude da maré ainda dificulta
mais a mistura das águas.
A corrente fluvial domina os processos deste
tipo de estuário. A carga sólida que é trazida até
ao vértice da cunha acumula-se aí e pode formar barras de
material relativamente grosseiro. A maior parte da carga em suspensão
vai ser arrastada até ao mar, onde se deposita rapidamente e dada a
pequena amplitude da maré pode originar deltas. O caso mais conhecido
é o do Mississipi (fig. 147).
Nos estuários com uma mistura parcial,
o caudal do rio é relativamente fraco e a mistura entre água doce
e salgada é muito mais intensa (fig. 150). Por isso, para restabelecer o
equilíbrio, há uma substituição por nova
água salgada. Isso, juntamente com correntes de maré fortes
provoca uma entrada de sedimentos marinhos dentro do estuário. Os mais
grosseiros serão depositados rapidamente, mas os mais finos
poderão subir até ao limite da penetração da
maré salina. Um exemplo deste caso é o Tamisa.
Os estuários em que há uma
mistura total de águas, apresentam aberturas maiores do que 500m e podem
não ter variações de salinidade na vertical, mas
apresentam variações intensas na horizontal. A influência
da força de Coriolis tende a empurrar a água doce para a margem
direita e a água salgada para a margem esquerda (fig. 151).
Paskoff (1985) introduz uma ideia
interessante: uma diminuição de caudal devida a uma estiagem,
juntamente com a existência de marés vivas, pode transformar um
estuário do 1º tipo, temporariamente, num estuário do tipo
2.
No caso do rio Douro, o estuário tem 22
km de comprimento, sendo a propagação da maré limitada a
montante pela barragem de Crestuma. A penetração salina depende
do caudal do rio e da amplitude da maré e só pode atingir a
barragem em condições de caudal excepcionalmente baixo. Quanto
à respectiva abertura, na figura pode ver-se que ela tem cerca de 1110m,
o que permitiria, em princípio, classificá-lo como um
estuário de mistura total.
Porém, o Cabedelo reduz em muito a sua
largura. Na foto da figura 152 ela pouco ultrapassa os 100m, mas a largura da
barra varia consoante a configuração e a posição do
Cabedelo, a qual tem variado bastante nos últimos 150 anos (fig. 153).
Nesta figura é possível ver que as áreas de maior profundidade
do canal fluvial se situam encostadas à margem direita, o que sugere o
efeito de Coriolis.
Pensámos que o encostar da corrente
fluvial à direita será o motivo pelo qual o Cabedelo se
desenvolveu na margem esquerda.
O provável jogo do efeito do Coriolis
parece, assim, confirmar a hipótese de inclusão do
estuário do Douro dentro deste último tipo de estuários.
Os materiais mais grosseiros que são
transportados pelos rios por rolamento ficam na parte interior do
estuário porque a perda de velocidade devida à
diminuição de do declive diminui a competência do rio. As
areias conseguem caminhar mais para jusante, mas o avanço da cunha
salina dificulta a sua progressão.
Na maior parte dos estuários existe uma
zona onde os sedimentos finos em suspensão estão muito
concentrados - o corpo lodoso (bouchon vaseux,
Paskoff, 1985, fig. 154). Este núcleo de sedimentos vasosos em
suspensão resulta da floculação das argilas trazidas pelo
rio em contacto com as águas salinas que circulam para montante ou para
jusante de acordo com as marés. Situa-se próximo do ponto nodal
que é o ponto de convergência onde se anulam as correntes de fundo
que sobem o estuário e a corrente fluvial que desce ao longo dele.
Actualmente, com a urbanização e industrialização
das margens do rios, uma parte do corpo lodoso é constituída por
poluentes, pelo que o seu estudo tem um grande interesse prático. Nas
épocas de cheia pode ser lançado no mar (Moreira, 1984), fazendo
então parte da constituição da pluma túrbida (fig.
147). A decantação da água turva acontece sobretudo
durante os períodos em que se dá a sua
imobilização, que coincidem sobretudo com as marés altas.
A capacidade de aderência de que gozam as partículas de
dimensão inferior à das areias (<62µ) faz com que, uma
vez depositadas seja difícil remobilizá-las. Esse facto permite
que as acumulações vasosas se vão repetindo em cada ciclo
de maré e, por isso, elas acabam por ser um traço dominante da
sedimentação estuarina.
Os deltas correspondem à foz de um
curso de água em que os aluviões fluviais se acumulam em vez de
serem redistribuídos pelas vagas e correntes litorais.
Deste modo, os deltas caracterizam-se por um
avanço da terra em relação ao mar. É justamente
esse traço que identifica os deltas. Muitas vezes o rio divide-se em
vários braços, mas essa não é uma
condição absolutamente necessária. No fundo, um delta
representa o oposto de um estuário, porque no caso do delta as
acções fluviais, de origem continental, dominam sobre as
acções marinhas (Paskoff, 1985).
Os deltas actuais são
holocénicos mas sobrepõem-se muitas vezes a deltas mais antigos
em locais subsidentes, o que explica a existência de espessuras de mais
de 10.000m de sedimentos deltaicos, por exemplo no delta do Níger.
As dimensões são muito
variáveis, mas em todos os casos há uma certa indecisão
nos limites entre o mar e a terra.
Existem frequentemente, dentro dos deltas,
condições para a formação e
acumulação de hidrocarbonetos, o que faz com que a sua
génese e estrutura tenham sido muito estudadas ultimamente. O delta do
Mississipi (fig. 147) é, sem dúvida, o mais estudado de todos.
É preciso que o rio tenha uma grande
capacidade de transporte e que transporte efectivamente uma grande quantidade
de sedimentos. Assim os rios das altas latitudes, que transportam muitos
detritos resultantes da crioclastia, bem com os das regiões de clima
continental, mediterrâneo e tropical com estação seca,
têm condições favoráveis à existência
de deltas.
Quanto mais fracas forem a
ondulação e as correntes marítimas, mais difícil
será a dispersão dos sedimentos trazidos pelo rio e portanto mais
provável será a sua acumulação pontual formando um
delta.
Assim, é mais provável formar-se
um delta no fundo duma baía do que no mar aberto.
O mesmo pode dizer-se das marés,
já que uma forte amplitude induz fortes correntes de descarga nos
estuários, propiciando a evacuação dos sedimentos. Assim,
com marés muito fracas, da ordem dos 0,5m, o Mediterrâneo é
um mar favorável à formação de deltas, até
porque está rodeado por uma série de cadeias montanhosas recentes
que fornecem cargas sólidas importantes aos cursos de água que
nele nascem.
A estabilidade do nível do mar, ou
mesmo uma ligeira descida, é uma condições importante.
Porém, muitos dos deltas situam-se em
áreas subsidentes por motivos tectónicos, a que se junta uma
subsidência por carga sedimentar e uma outra componente devida à
compactação dos sedimentos (fig. 155). Desta forma, a
subsidência no delta do Mississipi varia entre 0,3 e 1m por
século. Deste modo, os sucessivos deltas abandonados pelo rio aquando de
mudanças de curso vão ficando submersos.
O delta do Nilo, depois da
construção da barragem de Assuão tem vindo a sofrer de
problemas decorrentes da erosão costeira e da submersão e
salinização de terras agrícolas, situadas sobretudo no
local de braços abandonados do rio (fig. 156).
As lagunas típicas encontram-se nas
costas baixas de acumulação. São extensões
aquáticas alongadas, desenvolvendo-se paralelamente ao litoral e
isoladas deste por cordões litorais ou por restingas (fig. 157).
A comunicação com o mar faz-se
através de passagens mais ou menos numerosas existentes nesse
cordão. Mesmo quando não têm comunicação
directa com o mar sofrem a influência das marés.
As costas com lagunas correspondem a 13% dos
litorais ao nível do globo (Paskoff, 1985). São ambientes muito
produtivos sob o ponto de vista biológico.
As lagunas podem aparecer em muitas
circunstâncias. Mais do que enunciá-las e tentar fazer a sua
sistematização parece-nos que interessará aos estudantes
compreender algumas das lagunas mais emblemáticas a nível do
país e dar, também, alguns exemplos estrangeiros (Veneza, Bilene)
relativamente aos quais dispomos de alguma documentação que
reputamos de particularmente interessante.
Sem dúvida que a laguna mais conhecida
a nível do globo é a laguna de Veneza[1].
A figura 158 mostra a sua localização relativamente ao delta do
Pó, no fundo do mar Adriático. A forma como se desenvolve a pluma
de turbidez do rio Pó mostra claramente que a deriva litoral se
desenvolve de NE para SW.
A cidade dos Doges foi construída sobre
ilhas pantanosas localizadas entre o continente e o Lido, que é a
língua de areia que fecha a laguna (fig. 159).
Aparentemente, a área da cidade
terá sofrido uma descida de 30 cm desde 1890 (Dawson, 1992) em parte
devida à extracção de águas subterrâneas. Com
efeito, a subsidência na área de Veneza é de 3-5mm por ano,
mais do dobro das áreas envolventes. Tornou-se mais lenta a partir de
1975, quando essa extracção parou. Mas a tendência geral
para a subsidência não se deve só às actividades
antrópicas. Há uma tendência regional comprovada pelo facto
de a praia do último interglaciar, que geralmente aparece entre 2 e 8m,
aparecer a uma profundidade de –70m na região de Veneza (Dawson,
1992).
Porém, a carga turística que
envolve a cidade pode contribuir para o problema. Assim, a erosão
provocada pela trepidação dos barcos a motor (vaporetti) nos canais também tem a sua quota parte no afundamento desta
cidade cujo encanto provém da sua própria fragilidade.
A subsidência da área de Veneza
explica uma subida do nível do mar, que é mais intensa do que
aquela que aconteceria por causas puramente eustáticas. Daí
resulta que as invasões marinhas (acqua alta, fig. 160) sejam cada vez mais frequentes,
ao sabor de marés vivas e de ventos (scirocco) que empurrem as
águas do Adriático para Norte. O ano pior terá sido 1996,
com 101 episódios superiores a 80 centímetros. Em 1966 atingiu-se
um nível da água 1,94 m acima do nível médio (fig.
161).
Com uma altura de 100 cm apenas 4% da
superfície do centro histórico é invadida pela
água. Com 110 cm a percentagem sobe para 12%. As passerelles entram em acção a partir de 120 cm, quando 35% do centro
histórico fica inundado. A 130 cm (70% da superfície invadida) os
efeitos começam a ser graves e com uma altura de140 cm (90% da
superfície invadida) a situação é dramática[2],
como aconteceu já no mês de Novembro de 2002. Com efeito, no dia
16 atingiu-se a altura de 1,47m e os efeitos na cidade foram confrangedores
(fig. 159). Neste caso, o scirocco soprando 36 horas seguidas, fez subir 20cm o
nível da maré astronómica, já de si relativamente
elevado (+1,27).
O desvio de canais fluviais que depositavam os
seus sedimentos na laguna foi feito para impedir um processo de
colmatação que seria inelutável. A verdade, porém,
é que sem os aportes sedimentares vindos do continente, e com o
alargamento das passagens na restinga para permitir a entrada de grandes
navios, a penetração da água salgada na laguna
intensificou-se e isso contribuiu para a compactação das vasas
(Paskoff, 1985). O aumento da profundidade e o alargamento das passagens na
restinga produziu uma aumento da amplitude da maré de13 cm num
século, o que poderá relacionar-se com o aumento do número
e da intensidade dos casos de acqua alta. Mais uma
vez se prova que as intervenções humanas no litoral, ao mexer nos
delicados equilíbrios existentes têm consequências muitas
vezes inesperadas e frequentemente desagradáveis. No caso da laguna de
Veneza, a colmatação que seria o seu destino natural foi
substituída pela ameaça de uma anexação pelo mar. A
tendência evolutiva foi completamente invertida por acção
do homem (Paskoff, 1985).
A Ria de Aveiro corresponde a uma extensa
área lagunar, com cerca de 50km de extensão em latitude situada
entre as praias do Furadouro, a Norte e de Mira, a Sul (fig. 162). Durante o
máximo flandriano, o mar invadiu uma extensa área, criando uma
reentrância da linha de costa que poderia, efectivamente, ser descrita
com o uma “ria”, no sentido de “vale fluvial invadido pelas
águas do mar”.
Sabe-se que, em 922 Ovar ainda era um porto de
mar. No fim do século XV a restinga estaria à latitude da Costa
Nova. Durante a “Pequena Idade do Gelo” a descida do nível
do mar, e um possível acréscimo no fornecimento de sedimentos
devido a uma situação de tipo mais resistático provocada
pelo abaixamento da temperatura poderá ser responsável pelo
avanço muito rápido da restinga. Efectivamente , no “Resumo
histórico da barra de Aveiro” publicado juntamente com a
reimpressão (1947) da Memória Descritiva de Luís Gomes de
Carvalho, datada de 1808, afirma-se que em 1575 terá começado a
ruína do porto de Aveiro, a partir de um inverno muito rigoroso que fez
entupir a barra com areias. De 1736 a 1750 apenas entraram 15 navios da barra
de Aveiro.
A profundidade da água na laguna
não deveria ser muito grande. Por isso, os cursos de água que
nela desaguavam começaram a fazer um trabalho de assoreamento bastante
rápido, criando uma série de ilhotas que começam a
notar-se na figura 162 B. À medida que se foi desenvolvendo uma restinga
que crescia de Norte para Sul, a capacidade de escoamento dos sedimentos vai
ficando cada vez mais reduzida e a colmatação da laguna vai-se
intensificando.
Em 1756 a restinga estava no areal de Mira e
tinha fechado completamente a laguna. Essa situação estava a
matar o porto e a cidade de Aveiro, que no século 16 tinha tido uma
época de ouro e, além disso, provocava uma grave insalubridade
nestas áreas pantanosas que deixaram de ser invadidas pelo mar e de
sofrer a acção directa das marés.
Depois de vários estudos e tentativas
falhadas, a barra de Aveiro foi finalmente aberta, no local onde hoje se situa,
em 1808.
A necessidade de construir diques para
proteger a entrada do porto da invasão de areias da deriva litoral tem
produzido um assoreamento assinalável na parte da restinga situada a
norte dos diques e a inevitável erosão a sul (fig. 163).
A Ria Formosa (fig. 164) é outro grande
acidente lagunar, fechado por um sistema de ilhas barreiras. Segundo Thomas e
Goudie (2000) ilhas barreiras são formas geralmente arenosas, alongadas,
paralelas à costa e separadas dela por uma laguna. Não
estão ligadas ao continente nas extremidades e estão fraccionadas
por aberturas por onde passam as correntes de maré (ver também a
fig. 120).
Na costa portuguesa abundam corpos lagunares
mais pequenos e com origens diferenciadas em que predominam processos de
barragem que os cordões litorais (Esmoriz) ou os sistemas de dunas
costeiras (Ervideira) fazem relativamente a pequenos eixos de drenagem. Estes
são impedidos de desaguar no mar e acabam por formar planos de água
cujos fundos, devido a condições geológicas
favoráveis ou por acumulação de argilas de
decantação, acabam por se tornar impermeáveis, garantindo
a manutenção da lagoa.
Designam-se correntemente como lagoas.
Pensamos, à semelhança do que é dito em Daveau, (1988) a
propósito da Ria (haff-delta?) de Aveiro que nem sempre há
interesse em substituir a linguagem popular por termos pretensamente eruditos
que se arriscam a ser mal entendidos e mal utilizados pelo público.
As lagunas e lagoas litorais têm uma
tendência geral à colmatação. Com efeito, a
existência de uma barra arenosa (ilha barreira, restinga) que fecha a
laguna vai dificultar a exportação dos sedimentos que para ela
seja arrastados pelos cursos de água, pelo mar, ou pelo vento. A
existência de marés fortes pode ajudar à limpeza desses
sedimentos. Porém, para que isso aconteça, é
necessário que as passagens existentes nas lagunas e que fazem a
comunicação com o mar estejam desimpedidas. Muitas vezes é
necessário o homem intervir. Na costa portuguesa esse trabalho é
realizado na altura das marés vivas equinociais, aproveitando-se assim,
a grande amplitude da maré e a força da vazante para arrastar
alguns dos sedimentos que atapetavam o fundo da laguna.
Porém, a existência de algas nos
fundos funciona como uma armadilha para os sedimentos. Daí que a apanha
das algas tivesse uma importância vital na preservação do
ecossistema lagunar da Ria de Aveiro. A substituição do moliço
por adubos químicos levou a uma diminuição desta
actividade e ao desaparecimento de muitos dos barcos moliceiros. Trata-se de um
caso exemplar em que uma modernização apressada tem
consequências nefastas que se fazem sentir tanto a nível do
património natural como do património cultural.
No caso de uma subida do nível do mar
(fig. 165) podem acontecer duas situações. Se a subida for
suficientemente lenta para poder ser acompanhada por uma
deslocação do cordão litoral, ele vai-se deslocando na
plataforma continental e acaba por reconstituir-se a um nível mais alto,
preservando-se, assim, quer a laguna quer o cordão litoral que a separa
do mar. Neste caso, poderemos encontrar antigos sedimentos lagunares
sobrepostos por praias ou dunas. Este fenómeno pode, aliás,
acontecer mesmo que as variações do nível do mar sejam
muito pequenas, desde que uma modificação na dinâmica
litoral ou seu balanço sedimentar produza um recuo do sistema praia-duna
que o obrigue a invadir uma laguna situada na sua retaguarda.
Porém, se a transgressão for
muito rápida, o cordão litoral fica submerso e a laguna
desaparece (fig. 165, B).
A circulação dentro das lagunas
efectua-se através das correntes induzidas pelos ventos. Estas correntes
induzem um processo de deriva que acabam por criar pequenas flechas litorais.
Se estas forem oblíquas em relação ao desenvolvimento
geral da laguna, acabarão por a segmentar num rosário de bacias
arredondadas, orientadas, no seu conjunto, de acordo com a
orientação geral da laguna original. A situação
representada na figura 166 merece ser ilustrada com o caso da lagoa do Bilene
(fig. 167, Moçambique).
Encontram-se nas diversas
situações descritas ao longo desta aula. Com efeito, podem
aparecer nos estuários, nos deltas e nas lagunas e lagoas litorais.
Parece-nos, por isso, que deverão ser estudados neste momento, quando
concluímos este tema.
Os pântanos da zona temperada
compreendem duas partes. Uma inferior, de vasa nua, denominada slikke e uma superior, em que a vasa está colonizada por
vegetação geralmente designada schorre. Os termos em questão são de origem holandesa e
parecem-nos preferíveis a outras designações de origem
anglo-saxónica quiçá menos expressivas e menos
esclarecedoras.
O slikke é
a parte mais baixa de um espraiado pelítico inundada em todas as
preiamares mortas e descoberta nas baixa-mares (Moreira, 1984). Trata-se de uma
plataforma com muito pouco declive constituída, na parte inferior por
vasa mole e na parte superior por uma vasa mais consistente que estabelece a
passagem, através de um degrau nítido, para o schorre (fig. 168).
O schorre
(Moreira, 1984) corresponde a uma plataforma de vasa consolidada, revestida por
um solo halo-hidromorfo e colonizada, nas zonas extratropicais, por
vegetação herbácea (sapal). Nos climas tropicais a
colonização é feita por vegetação
arbustiva/arbórea e designa-se como mangal (fig. 169). O schorre só é coberto nas preiamares vivas e nas tempestades.
É recortado por canais de maré (fig. 170), onde apenas aflora a
vasa nua.
Na figura 171 é possível comprovar
a distribuição destes tipos de ambientes a nível mundial.
É importante salientar que se trata de ambientes muito produtivos sob o
ponto de vista biológico, onde muitas espécies de animais
marinhos nascem e passam pelas primeiras fases de desenvolvimento. Por isso, a
sua destruição devida a processos erosivos ou a sua
contaminação por poluentes terá reflexos negativos na
actividade piscatória das áreas para onde esses organismos
vão viver no estado adulto.
Aula Prática:
Continuação do tratamento de
sedimentos de praia e de duna. Granulometria e morfoscopia das areias de
depósitos de tipo lagunar. O significado dos depósitos lagunares
na caracterização da evolução geomorfológica
do litoral da região do Porto. O caso dos depósitos da praia da
Aguda (fig. 172)
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V. P. - (1967) - Processes of coastal development, Trad. inglesa, ed. J. A. Steers, Edimburgo, Oliver & Boyd, 738 p.
http://ortos.igeo.pt/ortofotos/
http://www.pegacity.it/justice/viagiustizia/4250/acqualta.htm
http://www.venicebanana.com/acqua.htm
Figura 147: A
pluma do Mississipi. Imagem extraída de: http://earthobservatory.nasa.gov/Newsroom/NewImages/Images/modis_mississippi_sed_lrg.jpg
Figura 148:
Variação da velocidade da corrente consoante a fase da
maré
Figura 149: Correntes
residuais e transporte de sedimentos nos estuários de cunha salina
Figura 150: Correntes
residuais num estuário de mistura parcial
Figura 151: Correntes salina e
fluvial num estuário de mistura total
Figura 152: Estuário do
rio Douro em 1995
Figura 153:
Evolução do Cabedelo nos útimos 150 anos (fonte:
Administração dos portos do Douro e Leixões, APDL)
Figura 154: O corpo lodoso e a
sua movimentação num estuário com cunha salina
Figura 155: Factores em jogo
na evolução de um delta
Figura 156: Problemas de
erosão no delta do Nilo devidos à retenção de
sedimentos na barragem de Assuão.
Figura 157: Elementos
constitutivos de uma laguna
Figura 158: O delta do
Pó e a laguna de Veneza
Figura 159: Imagem de
satélite da laguna de Veneza
Figura 160: Veneza durante a
”acqua alta” de 16 de Novembro de 2002
Figura 161: Valores
máximos da altura da água atingidos em cada ano, de 1927
até 16 de Novembro de 2002 em Veneza
Figura 162: A
evolução da Ria de Aveiro
Figura 161: O corte
artificial na restinga de Aveiro
Figura 164: Imagem de conjunto
da Ria Formosa
Figura 165:
Evolução de uma laguna afectada por uma transgressão
marinha
Figura 166:
Evolução por segmentação das lagunas litorais
Figura 167: Processo de
segmentação na lagoa do Bilene (Moçambique)
Fonte:
reunião de das folhas 1180 (parte) e 1181 da carta de Mocambique de
escala 1:50.000
Figura 168: Schorre e Slikke nos estuários do rio Maputo
(Moçambique) e do rio Sado (Portugal).
Figura 169: Aspecto do mangal
junto à restinga da Praia dos Pescadores (Maputo, Moçambique)
Figura 170: Canal de
maré: região de Maputo (Moçambique)
Figura 171:
Distribuição das áreas de mangal e de sapal a nível
do globo.
Figura 172: Depósitos lagunares encontrados na praia da Aguda (Vila Nova de Gaia) em Outubro de 2002. O seu aparecimento fica a dever-se à erosão produzida pela implantação do quebra mar destacado da Praia da Aguda.
[1] Veneza é um lugar que retira a sua magia da água, das gôndolas e dos palácios. A decadência da cidade é dada de forma magistral no livro de Thomas Mann e no filme de Luchino Visconti. Mas uma parte da melancolia que a envolve, vem do carácter inexorável do seu afundamento, da luta incessante para manter vivo um milagre que dura há séculos…
[2] http://www.venicebanana.com/acqua.htm