Aula 8: Estuários, deltas e lagunas

Nesta aula abordaremos os locais onde os rios encontram o mar - estuários e deltas e também as lagunas. Todos estes ambientes têm em comum a existência de pântanos e o facto de conterem água doce ou salobra na proximidade do litoral.

Estuários

Trata-se do sector terminal dos rios, até onde o canal fluvial é percorrido pelas correntes de maré. Muitas vezes os estuários correspondem a sectores alargados dos cursos de água, o que faz sentido se pensarmos que grande parte dos litorais nossos contemporâneos são litorais de submersão (fig. 59), que resultaram da invasão marinha de vales fluviais que, durante as glaciações, sofreram um escavamento importante, a favor de uma descida do nível do mar estimada entre 120 e 140m (aula 5). É o caso também do Rio Douro, em que o fundo do respectivo paleovale, junto à foz, está a 50 m de profundidade (A. Carvalho, 1988).

Como é óbvio, a amplitude das marés (aula 4) é determinante na caracterização dos estuários. No caso dos estuários micromareais a penetração da maré faz-se até pouca distância da costa. No caso dos estuários macromareais acontecerá o contrário. Se a acção das marés enfraquece, outras acções (ondulação, deposição de sedimentos continentais) podem tornar-se dominantes.

Segundo R. Paskoff (1985) a definição de estuário implica uma ampla abertura sobre o mar. Ora, esta abertura só poderá manter-se se houver um equilíbrio entre os sedimentos transportados pelo rio e a respectiva capacidade de escoamento. Além da amplitude das marés, as variações relativas do nível do mar, o clima reinante na bacia vertente e o respectivo grau de florestação, controlando o tipo e quantidade de sedimentos, acabam por ter um papel importante na caracterização dos estuários.

Pode dizer-se que estes têm sofrido, de um modo geral desde que se atingiu o máximo da transgressão flandriana, há 5-6000 anos, um processo de colmatação que é extensivo, como veremos, a muitas lagoas litorais.

Dinâmica e hidrologia dos estuários

As duas forças essenciais em acção nos estuários são a força da corrente fluvial e a força das marés.

A importância da corrente fluvial depende, como é evidente, do seu caudal e da velocidade com que as águas vêm animadas. Em período de cheia, por exemplo, as plumas túrbidas produzidas pelos rios podem seguir-se até distâncias importantes, no seio do oceano (ver figs. 16 e 146).

A corrente fluvial é contrariada pela força da maré enchente. Pelo contrário, ela vai sofrer um reforço assinalável pela corrente da vazante.

Ao chegar ao estuário a força da corrente fluvial amortece-se, por diminuição do declive e pela resistência oferecida pela água do mar e acaba por anular-se.

A maré enchente penetra ao longo do canal fluvial até distâncias variáveis consoante o caudal do rio e a amplitude das marés. Por vezes, a subida da maré ao longo de um estuário origina o fenómeno do macaréu (fig. 56).

À medida que a maré enchente vai avançando ao longo do rio, a sua amplitude vai-se reduzindo, até desaparecer completamente.

No máximo da maré alta, o nível do mar é mais elevado que o nível da água no rio. Daí a penetração da água do mar ao longo do rio, ou enchente.

Pelo contrário, no máximo de maré baixa, o nível da água é bastante mais alto no rio que no mar, porque à água do rio se juntou a água a água marinha que nele penetrou durante a enchente.

Por isso, a favor desse desnível, se faz uma descarga, durante a vazante, que pode atingir velocidades elevadas.

Na figura 148 pode ver-se como varia a velocidade no estuário consoante o nível da maré. Quer durante a maré baixa quer durante a maré alta não há corrente alguma e a água está praticamente parada. É nos momentos em que a maré está no seu ponto médio que se atingem as velocidades mais elevadas. Este facto tem, como é óbvio, importantes consequências em termos de sedimentação, já que a ausência de corrente durante a maré alta vai produzir a deposição de sedimentos transportados em suspensão ou resultantes da floculação das argilas com origem fluvial em contacto com as águas marinhas ricas em iões.

Se, numa situação de cheia coincidirem marés altas vivas e uma sobre-elevação meteorológica do tipo storm surge (fig. 31), o rio não consegue escoar água que transporta. Esta vai-se acumulando, e fazendo subir o respectivo nível junto à foz e originando cheias importantes.

Esse fenómeno pode ser particularmente intenso em rios que se mantenham encaixados até perto da foz, porque num vale estreito a cheia tem tendência a subir mais rapidamente.

É justamente isso que acontece com o Douro e daí o temor, para as populações ribeirinhas do Porto e Gaia, de que os períodos de cheias coincidam com marés vivas.

A cunha salina

A penetração da maré num estuário faz-se através de uma maré de salinidade (Paskoff, 1985) que normalmente fica muito aquém da maré puramente dinâmica.

Com a água do mar é mais densa, existe a tendência para que a água doce fique a sobrenadar a água salgada. Porém há sempre alguma mistura. Mas a intensidade dessa mistura depende das velocidades relativas e volumes das duas correntes.

Designam-se por correntes residuais as correntes de mistura entre as águas do rio e do mar (J. Pethick, 1984).

A forma como se organizam as correntes residuais nos estuários depende da relação entre as quantidade de água marinha e fluvial. Há 3 tipos de situações (J, Pethick, 1984):

  1. Estuários de cunha salina, em que predomina a corrente de água doce,
  2. Estuários com uma mistura parcial, em que predomina a corrente de maré,
  3. Estuários com uma mistura total, que são estuários muito largos em que as marés predominam.

Nos estuários de cunha salina uma pequena amplitude de maré coexiste com um grande caudal fluvial. Uma vez que as águas do mar são mais densas que as águas do rio, elas insinuam-se sob as águas fluviais constituindo uma cunha salina (fig. 149). A mistura entre a água do rio e do mar é pouco intensa. Como as correntes residuais são fracas a carga de fundo do rio dificilmente é transportada até ao mar, parando junto do vértice da cunha. A pequena amplitude da maré ainda dificulta mais a mistura das águas.

A corrente fluvial domina os processos deste tipo de estuário. A carga sólida que é trazida até ao vértice da cunha acumula-se aí e pode formar barras de material relativamente grosseiro. A maior parte da carga em suspensão vai ser arrastada até ao mar, onde se deposita rapidamente e dada a pequena amplitude da maré pode originar deltas. O caso mais conhecido é o do Mississipi (fig. 147).

Nos estuários com uma mistura parcial, o caudal do rio é relativamente fraco e a mistura entre água doce e salgada é muito mais intensa (fig. 150). Por isso, para restabelecer o equilíbrio, há uma substituição por nova água salgada. Isso, juntamente com correntes de maré fortes provoca uma entrada de sedimentos marinhos dentro do estuário. Os mais grosseiros serão depositados rapidamente, mas os mais finos poderão subir até ao limite da penetração da maré salina. Um exemplo deste caso é o Tamisa.

Os estuários em que há uma mistura total de águas, apresentam aberturas maiores do que 500m e podem não ter variações de salinidade na vertical, mas apresentam variações intensas na horizontal. A influência da força de Coriolis tende a empurrar a água doce para a margem direita e a água salgada para a margem esquerda (fig. 151).

Paskoff (1985) introduz uma ideia interessante: uma diminuição de caudal devida a uma estiagem, juntamente com a existência de marés vivas, pode transformar um estuário do 1º tipo, temporariamente, num estuário do tipo 2.

Algumas reflexões sobre o estuário do Douro

No caso do rio Douro, o estuário tem 22 km de comprimento, sendo a propagação da maré limitada a montante pela barragem de Crestuma. A penetração salina depende do caudal do rio e da amplitude da maré e só pode atingir a barragem em condições de caudal excepcionalmente baixo. Quanto à respectiva abertura, na figura pode ver-se que ela tem cerca de 1110m, o que permitiria, em princípio, classificá-lo como um estuário de mistura total.

Porém, o Cabedelo reduz em muito a sua largura. Na foto da figura 152 ela pouco ultrapassa os 100m, mas a largura da barra varia consoante a configuração e a posição do Cabedelo, a qual tem variado bastante nos últimos 150 anos (fig. 153). Nesta figura é possível ver que as áreas de maior profundidade do canal fluvial se situam encostadas à margem direita, o que sugere o efeito de Coriolis.

Pensámos que o encostar da corrente fluvial à direita será o motivo pelo qual o Cabedelo se desenvolveu na margem esquerda.

O provável jogo do efeito do Coriolis parece, assim, confirmar a hipótese de inclusão do estuário do Douro dentro deste último tipo de estuários.

 

Movimentação dos sedimentos nos estuários

Os materiais mais grosseiros que são transportados pelos rios por rolamento ficam na parte interior do estuário porque a perda de velocidade devida à diminuição de do declive diminui a competência do rio. As areias conseguem caminhar mais para jusante, mas o avanço da cunha salina dificulta a sua progressão.

Na maior parte dos estuários existe uma zona onde os sedimentos finos em suspensão estão muito concentrados - o corpo lodoso (bouchon vaseux, Paskoff, 1985, fig. 154). Este núcleo de sedimentos vasosos em suspensão resulta da floculação das argilas trazidas pelo rio em contacto com as águas salinas que circulam para montante ou para jusante de acordo com as marés. Situa-se próximo do ponto nodal que é o ponto de convergência onde se anulam as correntes de fundo que sobem o estuário e a corrente fluvial que desce ao longo dele. Actualmente, com a urbanização e industrialização das margens do rios, uma parte do corpo lodoso é constituída por poluentes, pelo que o seu estudo tem um grande interesse prático. Nas épocas de cheia pode ser lançado no mar (Moreira, 1984), fazendo então parte da constituição da pluma túrbida (fig. 147). A decantação da água turva acontece sobretudo durante os períodos em que se dá a sua imobilização, que coincidem sobretudo com as marés altas. A capacidade de aderência de que gozam as partículas de dimensão inferior à das areias (<62µ) faz com que, uma vez depositadas seja difícil remobilizá-las. Esse facto permite que as acumulações vasosas se vão repetindo em cada ciclo de maré e, por isso, elas acabam por ser um traço dominante da sedimentação estuarina.

Os deltas

Os deltas correspondem à foz de um curso de água em que os aluviões fluviais se acumulam em vez de serem redistribuídos pelas vagas e correntes litorais.

Deste modo, os deltas caracterizam-se por um avanço da terra em relação ao mar. É justamente esse traço que identifica os deltas. Muitas vezes o rio divide-se em vários braços, mas essa não é uma condição absolutamente necessária. No fundo, um delta representa o oposto de um estuário, porque no caso do delta as acções fluviais, de origem continental, dominam sobre as acções marinhas (Paskoff, 1985).

Os deltas actuais são holocénicos mas sobrepõem-se muitas vezes a deltas mais antigos em locais subsidentes, o que explica a existência de espessuras de mais de 10.000m de sedimentos deltaicos, por exemplo no delta do Níger.

As dimensões são muito variáveis, mas em todos os casos há uma certa indecisão nos limites entre o mar e a terra.

Existem frequentemente, dentro dos deltas, condições para a formação e acumulação de hidrocarbonetos, o que faz com que a sua génese e estrutura tenham sido muito estudadas ultimamente. O delta do Mississipi (fig. 147) é, sem dúvida, o mais estudado de todos.

Condições de formação dos deltas

É preciso que o rio tenha uma grande capacidade de transporte e que transporte efectivamente uma grande quantidade de sedimentos. Assim os rios das altas latitudes, que transportam muitos detritos resultantes da crioclastia, bem com os das regiões de clima continental, mediterrâneo e tropical com estação seca, têm condições favoráveis à existência de deltas.

Quanto mais fracas forem a ondulação e as correntes marítimas, mais difícil será a dispersão dos sedimentos trazidos pelo rio e portanto mais provável será a sua acumulação pontual formando um delta.

Assim, é mais provável formar-se um delta no fundo duma baía do que no mar aberto.

O mesmo pode dizer-se das marés, já que uma forte amplitude induz fortes correntes de descarga nos estuários, propiciando a evacuação dos sedimentos. Assim, com marés muito fracas, da ordem dos 0,5m, o Mediterrâneo é um mar favorável à formação de deltas, até porque está rodeado por uma série de cadeias montanhosas recentes que fornecem cargas sólidas importantes aos cursos de água que nele nascem.

A estabilidade do nível do mar, ou mesmo uma ligeira descida, é uma condições importante.

Porém, muitos dos deltas situam-se em áreas subsidentes por motivos tectónicos, a que se junta uma subsidência por carga sedimentar e uma outra componente devida à compactação dos sedimentos (fig. 155). Desta forma, a subsidência no delta do Mississipi varia entre 0,3 e 1m por século. Deste modo, os sucessivos deltas abandonados pelo rio aquando de mudanças de curso vão ficando submersos.

O delta do Nilo, depois da construção da barragem de Assuão tem vindo a sofrer de problemas decorrentes da erosão costeira e da submersão e salinização de terras agrícolas, situadas sobretudo no local de braços abandonados do rio (fig. 156).

Lagunas

As lagunas típicas encontram-se nas costas baixas de acumulação. São extensões aquáticas alongadas, desenvolvendo-se paralelamente ao litoral e isoladas deste por cordões litorais ou por restingas (fig. 157).

A comunicação com o mar faz-se através de passagens mais ou menos numerosas existentes nesse cordão. Mesmo quando não têm comunicação directa com o mar sofrem a influência das marés.

As costas com lagunas correspondem a 13% dos litorais ao nível do globo (Paskoff, 1985). São ambientes muito produtivos sob o ponto de vista biológico.

As lagunas podem aparecer em muitas circunstâncias. Mais do que enunciá-las e tentar fazer a sua sistematização parece-nos que interessará aos estudantes compreender algumas das lagunas mais emblemáticas a nível do país e dar, também, alguns exemplos estrangeiros (Veneza, Bilene) relativamente aos quais dispomos de alguma documentação que reputamos de particularmente interessante.

O caso da laguna de Veneza

Sem dúvida que a laguna mais conhecida a nível do globo é a laguna de Veneza[1]. A figura 158 mostra a sua localização relativamente ao delta do Pó, no fundo do mar Adriático. A forma como se desenvolve a pluma de turbidez do rio Pó mostra claramente que a deriva litoral se desenvolve de NE para SW.

A cidade dos Doges foi construída sobre ilhas pantanosas localizadas entre o continente e o Lido, que é a língua de areia que fecha a laguna (fig. 159).

Aparentemente, a área da cidade terá sofrido uma descida de 30 cm desde 1890 (Dawson, 1992) em parte devida à extracção de águas subterrâneas. Com efeito, a subsidência na área de Veneza é de 3-5mm por ano, mais do dobro das áreas envolventes. Tornou-se mais lenta a partir de 1975, quando essa extracção parou. Mas a tendência geral para a subsidência não se deve só às actividades antrópicas. Há uma tendência regional comprovada pelo facto de a praia do último interglaciar, que geralmente aparece entre 2 e 8m, aparecer a uma profundidade de –70m na região de Veneza (Dawson, 1992).

Porém, a carga turística que envolve a cidade pode contribuir para o problema. Assim, a erosão provocada pela trepidação dos barcos a motor (vaporetti) nos canais também tem a sua quota parte no afundamento desta cidade cujo encanto provém da sua própria fragilidade.

A subsidência da área de Veneza explica uma subida do nível do mar, que é mais intensa do que aquela que aconteceria por causas puramente eustáticas. Daí resulta que as invasões marinhas (acqua alta, fig. 160) sejam cada vez mais frequentes, ao sabor de marés vivas e de ventos (scirocco) que empurrem as águas do Adriático para Norte. O ano pior terá sido 1996, com 101 episódios superiores a 80 centímetros. Em 1966 atingiu-se um nível da água 1,94 m acima do nível médio (fig. 161).

Com uma altura de 100 cm apenas 4% da superfície do centro histórico é invadida pela água. Com 110 cm a percentagem sobe para 12%. As passerelles entram em acção a partir de 120 cm, quando 35% do centro histórico fica inundado. A 130 cm (70% da superfície invadida) os efeitos começam a ser graves e com uma altura de140 cm (90% da superfície invadida) a situação é dramática[2], como aconteceu já no mês de Novembro de 2002. Com efeito, no dia 16 atingiu-se a altura de 1,47m e os efeitos na cidade foram confrangedores (fig. 159). Neste caso, o scirocco soprando 36 horas seguidas, fez subir 20cm o nível da maré astronómica, já de si relativamente elevado (+1,27).

O desvio de canais fluviais que depositavam os seus sedimentos na laguna foi feito para impedir um processo de colmatação que seria inelutável. A verdade, porém, é que sem os aportes sedimentares vindos do continente, e com o alargamento das passagens na restinga para permitir a entrada de grandes navios, a penetração da água salgada na laguna intensificou-se e isso contribuiu para a compactação das vasas (Paskoff, 1985). O aumento da profundidade e o alargamento das passagens na restinga produziu uma aumento da amplitude da maré de13 cm num século, o que poderá relacionar-se com o aumento do número e da intensidade dos casos de acqua alta. Mais uma vez se prova que as intervenções humanas no litoral, ao mexer nos delicados equilíbrios existentes têm consequências muitas vezes inesperadas e frequentemente desagradáveis. No caso da laguna de Veneza, a colmatação que seria o seu destino natural foi substituída pela ameaça de uma anexação pelo mar. A tendência evolutiva foi completamente invertida por acção do homem (Paskoff, 1985).

A Ria de Aveiro

A Ria de Aveiro corresponde a uma extensa área lagunar, com cerca de 50km de extensão em latitude situada entre as praias do Furadouro, a Norte e de Mira, a Sul (fig. 162). Durante o máximo flandriano, o mar invadiu uma extensa área, criando uma reentrância da linha de costa que poderia, efectivamente, ser descrita com o uma “ria”, no sentido de “vale fluvial invadido pelas águas do mar”.

Sabe-se que, em 922 Ovar ainda era um porto de mar. No fim do século XV a restinga estaria à latitude da Costa Nova. Durante a “Pequena Idade do Gelo” a descida do nível do mar, e um possível acréscimo no fornecimento de sedimentos devido a uma situação de tipo mais resistático provocada pelo abaixamento da temperatura poderá ser responsável pelo avanço muito rápido da restinga. Efectivamente , no “Resumo histórico da barra de Aveiro” publicado juntamente com a reimpressão (1947) da Memória Descritiva de Luís Gomes de Carvalho, datada de 1808, afirma-se que em 1575 terá começado a ruína do porto de Aveiro, a partir de um inverno muito rigoroso que fez entupir a barra com areias. De 1736 a 1750 apenas entraram 15 navios da barra de Aveiro.

A profundidade da água na laguna não deveria ser muito grande. Por isso, os cursos de água que nela desaguavam começaram a fazer um trabalho de assoreamento bastante rápido, criando uma série de ilhotas que começam a notar-se na figura 162 B. À medida que se foi desenvolvendo uma restinga que crescia de Norte para Sul, a capacidade de escoamento dos sedimentos vai ficando cada vez mais reduzida e a colmatação da laguna vai-se intensificando.

Em 1756 a restinga estava no areal de Mira e tinha fechado completamente a laguna. Essa situação estava a matar o porto e a cidade de Aveiro, que no século 16 tinha tido uma época de ouro e, além disso, provocava uma grave insalubridade nestas áreas pantanosas que deixaram de ser invadidas pelo mar e de sofrer a acção directa das marés.

Depois de vários estudos e tentativas falhadas, a barra de Aveiro foi finalmente aberta, no local onde hoje se situa, em 1808.

A necessidade de construir diques para proteger a entrada do porto da invasão de areias da deriva litoral tem produzido um assoreamento assinalável na parte da restinga situada a norte dos diques e a inevitável erosão a sul (fig. 163).

Outras lagoas existentes na costa portuguesa

A Ria Formosa (fig. 164) é outro grande acidente lagunar, fechado por um sistema de ilhas barreiras. Segundo Thomas e Goudie (2000) ilhas barreiras são formas geralmente arenosas, alongadas, paralelas à costa e separadas dela por uma laguna. Não estão ligadas ao continente nas extremidades e estão fraccionadas por aberturas por onde passam as correntes de maré (ver também a fig. 120).

Na costa portuguesa abundam corpos lagunares mais pequenos e com origens diferenciadas em que predominam processos de barragem que os cordões litorais (Esmoriz) ou os sistemas de dunas costeiras (Ervideira) fazem relativamente a pequenos eixos de drenagem. Estes são impedidos de desaguar no mar e acabam por formar planos de água cujos fundos, devido a condições geológicas favoráveis ou por acumulação de argilas de decantação, acabam por se tornar impermeáveis, garantindo a manutenção da lagoa.

Designam-se correntemente como lagoas. Pensamos, à semelhança do que é dito em Daveau, (1988) a propósito da Ria (haff-delta?) de Aveiro que nem sempre há interesse em substituir a linguagem popular por termos pretensamente eruditos que se arriscam a ser mal entendidos e mal utilizados pelo público.

A evolução das lagunas litorais

As lagunas e lagoas litorais têm uma tendência geral à colmatação. Com efeito, a existência de uma barra arenosa (ilha barreira, restinga) que fecha a laguna vai dificultar a exportação dos sedimentos que para ela seja arrastados pelos cursos de água, pelo mar, ou pelo vento. A existência de marés fortes pode ajudar à limpeza desses sedimentos. Porém, para que isso aconteça, é necessário que as passagens existentes nas lagunas e que fazem a comunicação com o mar estejam desimpedidas. Muitas vezes é necessário o homem intervir. Na costa portuguesa esse trabalho é realizado na altura das marés vivas equinociais, aproveitando-se assim, a grande amplitude da maré e a força da vazante para arrastar alguns dos sedimentos que atapetavam o fundo da laguna.

Porém, a existência de algas nos fundos funciona como uma armadilha para os sedimentos. Daí que a apanha das algas tivesse uma importância vital na preservação do ecossistema lagunar da Ria de Aveiro. A substituição do moliço por adubos químicos levou a uma diminuição desta actividade e ao desaparecimento de muitos dos barcos moliceiros. Trata-se de um caso exemplar em que uma modernização apressada tem consequências nefastas que se fazem sentir tanto a nível do património natural como do património cultural.

No caso de uma subida do nível do mar (fig. 165) podem acontecer duas situações. Se a subida for suficientemente lenta para poder ser acompanhada por uma deslocação do cordão litoral, ele vai-se deslocando na plataforma continental e acaba por reconstituir-se a um nível mais alto, preservando-se, assim, quer a laguna quer o cordão litoral que a separa do mar. Neste caso, poderemos encontrar antigos sedimentos lagunares sobrepostos por praias ou dunas. Este fenómeno pode, aliás, acontecer mesmo que as variações do nível do mar sejam muito pequenas, desde que uma modificação na dinâmica litoral ou seu balanço sedimentar produza um recuo do sistema praia-duna que o obrigue a invadir uma laguna situada na sua retaguarda.

Porém, se a transgressão for muito rápida, o cordão litoral fica submerso e a laguna desaparece (fig. 165, B).

Circulação dentro das lagunas

A circulação dentro das lagunas efectua-se através das correntes induzidas pelos ventos. Estas correntes induzem um processo de deriva que acabam por criar pequenas flechas litorais. Se estas forem oblíquas em relação ao desenvolvimento geral da laguna, acabarão por a segmentar num rosário de bacias arredondadas, orientadas, no seu conjunto, de acordo com a orientação geral da laguna original. A situação representada na figura 166 merece ser ilustrada com o caso da lagoa do Bilene (fig. 167, Moçambique).

Pântanos marítimos

Encontram-se nas diversas situações descritas ao longo desta aula. Com efeito, podem aparecer nos estuários, nos deltas e nas lagunas e lagoas litorais. Parece-nos, por isso, que deverão ser estudados neste momento, quando concluímos este tema.

Os pântanos da zona temperada compreendem duas partes. Uma inferior, de vasa nua, denominada slikke e uma superior, em que a vasa está colonizada por vegetação geralmente designada schorre. Os termos em questão são de origem holandesa e parecem-nos preferíveis a outras designações de origem anglo-saxónica quiçá menos expressivas e menos esclarecedoras.

O slikke é a parte mais baixa de um espraiado pelítico inundada em todas as preiamares mortas e descoberta nas baixa-mares (Moreira, 1984). Trata-se de uma plataforma com muito pouco declive constituída, na parte inferior por vasa mole e na parte superior por uma vasa mais consistente que estabelece a passagem, através de um degrau nítido, para o schorre (fig. 168).

O schorre (Moreira, 1984) corresponde a uma plataforma de vasa consolidada, revestida por um solo halo-hidromorfo e colonizada, nas zonas extratropicais, por vegetação herbácea (sapal). Nos climas tropicais a colonização é feita por vegetação arbustiva/arbórea e designa-se como mangal (fig. 169). O schorre só é coberto nas preiamares vivas e nas tempestades. É recortado por canais de maré (fig. 170), onde apenas aflora a vasa nua.

Na figura 171 é possível comprovar a distribuição destes tipos de ambientes a nível mundial. É importante salientar que se trata de ambientes muito produtivos sob o ponto de vista biológico, onde muitas espécies de animais marinhos nascem e passam pelas primeiras fases de desenvolvimento. Por isso, a sua destruição devida a processos erosivos ou a sua contaminação por poluentes terá reflexos negativos na actividade piscatória das áreas para onde esses organismos vão viver no estado adulto.

Aula Prática:

Continuação do tratamento de sedimentos de praia e de duna. Granulometria e morfoscopia das areias de depósitos de tipo lagunar. O significado dos depósitos lagunares na caracterização da evolução geomorfológica do litoral da região do Porto. O caso dos depósitos da praia da Aguda (fig. 172)

Bibliografia utilizada

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CARVALHO, L. G., (1908) – Memória descritiva (Notícia circunstanciada do plano e processo dos efectivos trabalhos hidráulicos empregados na abertura da barra de Aveiro, segundo as ordens do Príncipe regente, Nosso Senhor), com um “Resumo histórico da barra de Aveiro”, Col. de Reimpressões do “Arquivo do Distrito de Aveiro”, sep. do vol. XIII do Arquivo do Distrito de Aveiro.

DAVEAU, S., (1988) - A história do Haff-delta de Aveiro ou...as fraquezas do nosso ensino da Geografia», Finisterra, XXIII (46), Lisboa, p. 327-335.

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Websites:

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http://www.pegacity.it/justice/viagiustizia/4250/acqualta.htm

http://www.venicebanana.com/acqua.htm

 

Figura 147: A pluma do Mississipi. Imagem extraída de: http://earthobservatory.nasa.gov/Newsroom/NewImages/Images/modis_mississippi_sed_lrg.jpg

 

 

Figura 148: Variação da velocidade da corrente consoante a fase da maré

 

Figura 149: Correntes residuais e transporte de sedimentos nos estuários de cunha salina

Figura 150: Correntes residuais num estuário de mistura parcial

Figura 151: Correntes salina e fluvial num estuário de mistura total

Figura 152: Estuário do rio Douro em 1995

Figura 153: Evolução do Cabedelo nos útimos 150 anos (fonte: Administração dos portos do Douro e Leixões, APDL)

Figura 154: O corpo lodoso e a sua movimentação num estuário com cunha salina

Figura 155: Factores em jogo na evolução de um delta

Figura 156: Problemas de erosão no delta do Nilo devidos à retenção de sedimentos na barragem de Assuão.

Figura 157: Elementos constitutivos de uma laguna

Figura 158: O delta do Pó e a laguna de Veneza

Figura 159: Imagem de satélite da laguna de Veneza

Figura 160: Veneza durante a ”acqua alta” de 16 de Novembro de 2002

Figura 161: Valores máximos da altura da água atingidos em cada ano, de 1927 até 16 de Novembro de 2002 em Veneza

Figura 162: A evolução da Ria de Aveiro

Figura 161: O corte artificial na restinga de Aveiro

 

Figura 164: Imagem de conjunto da Ria Formosa

 

Figura 165: Evolução de uma laguna afectada por uma transgressão marinha

 

Figura 166: Evolução por segmentação das lagunas litorais

 

Figura 167: Processo de segmentação na lagoa do Bilene (Moçambique)

Fonte: reunião de das folhas 1180 (parte) e 1181 da carta de Mocambique de escala 1:50.000

 

Figura 168: Schorre e Slikke nos estuários do rio Maputo (Moçambique) e do rio Sado (Portugal).

 

 

Figura 169: Aspecto do mangal junto à restinga da Praia dos Pescadores (Maputo, Moçambique)

Figura 170: Canal de maré: região de Maputo (Moçambique)

Figura 171: Distribuição das áreas de mangal e de sapal a nível do globo.

 

Figura 172: Depósitos lagunares encontrados na praia da Aguda (Vila Nova de Gaia) em Outubro de 2002. O seu aparecimento fica a dever-se à erosão produzida pela implantação do quebra mar destacado da Praia da Aguda.



[1] Veneza é um lugar que retira a sua magia da água, das gôndolas e dos palácios. A decadência da cidade é dada de forma magistral no livro de Thomas Mann e no filme de Luchino Visconti. Mas uma parte da melancolia que a envolve, vem do carácter inexorável do seu afundamento, da luta incessante para manter vivo um milagre que dura há séculos…

 

[2] http://www.venicebanana.com/acqua.htm