O termo litoral
é utilizado todos os dias na linguagem corrente,
sem se cuidar de fazer dele um uso rigoroso e, muito menos, de o definir com
precisão. A palavra é utilizada como contraponto à palavra
interior e referida, muitas vezes, a propósito do processo de litoralização
.
Este processo é correlativo da desertificação
do interior e pode ser claramente compreendido em mapas de datas diferentes
(1970 e 1980) que mostram uma densificação da
população nas áreas litorais.
Com efeito, o
crescimento económico das últimas décadas centrou-se
essencialmente em nós servidos por boas acessibilidades. Ora, a verdade é que, quer devido
à importância histórica dos portos na
estruturação da rede viária, bem
como às conhecidas dificuldades de implantação de uma rede
rápida e eficaz no interior do país (em parte devidas à
distribuição do relevo, cuja
rugosidade só pode ser vencida com elevados custos) a parte litoral do
país tem sido favorecida face ao interior, sob
o ponto de vista económico. Este fenómeno é correlativo do
empobrecimento do interior e do seu esvaziamento humano. A
concentração das população nos centros urbanos do
litoral tem como consequência o congestionamento constante das
respectivas infra-estruturas, de que decorre a
necessidade de as ampliar e multiplicar permanentemente. Daí decorre uma
evidente sobrecarga ambiental.
Ora, apesar da
capacidade de depuração dos ambientes litorais, que alguns pensam ser inesgotável, eles
são, como veremos, ambientes frágeis a vários títulos.
Por outro lado, uma
parte significativa da actividade económica em Portugal, depende do turismo. E o turismo, em
Portugal, apesar das louváveis tentativas
que têm sido feitas para o levar para o interior, ainda é muito um turismo de sol mar
e praia (D. B. Ferreira, 2001).
Por isso a questão da salvaguarda da
qualidade ambiental do litoral é particularmente pertinente. Mas a
salvaguarda deste ambiente complexo e frágil só poderá
fazer-se com base num conhecimento tão aprofundado quanto
possível da dinâmica natural dos ambientes costeiros, de tal forma que esse conhecimento possa ser convenientemente integrado
no ordenamento do território que é, como
muitos afirmam, uma das necessidades mais urgentes
do país.
Figure 1: Densidade da população nos concelhos do litoral
Existe, ainda, uma outra motivação, de cariz
mais estritamente científico: sendo uma zona
de charneira, de interface, é uma faixa muito rica sob o ponto de vista da complexidade das
interacções entre a litosfera, a
hidrosfera, a atmosfera e a biosfera. Isso é
um estímulo para a curiosidade dos estudantes desafiando o seu desejo de
aprender e de investigar.
Figura 3 Densidade da
população nos concelhos do litoral
O casamento entre uma área estimulante
sob o ponto de vista científico e a possibilidade de
aplicação dos conhecimentos poderá ser um valor
acrescentado num momento em que a saída tradicional
do curso de Geografia sofre uma importante
redução e os estudantes se preocupam, justificadamente, com as saídas
profissionais e com a utilidade social do curso.
Não é tão fácil
como parece definir litoral. Tratando-se de uma palavra de uso muito corrente,
a sua utilização em contextos diversos
acaba por lhe conceder uma grande amplitude de significados.
No dicionário da Porto Editora, costa é definida como parte das
terras emersas em contacto com o mar.
Por sua vez, litoral
é definido como sendo um adjectivo qualificando aquilo que diz respeito à beira-mar ou
ainda como um substantivo correspondendo, então,
à faixa de terreno
junto à costa.
Sendo assim, costa é um conceito mais
restrito do que litoral. Quando atentamos na definição faixa de
terreno junto à costa , apercebemo-nos de que não há
qualquer precisão relativamente ao significado da palavra junto.
Assim, a faixa de terreno junto à costa
poderá ter extensões muito variadas.
Em M.E. S. A. Moreira (1984) encontramos uma
definição que dá conta desse problema:
Litoral: designação dada
à faixa do continente que está em contacto com o mar, ou a
fenómenos característicos dessa área. Alguns autores
restringem o litoral à faixa entremarés, outros estendem-no para
o interior, por um espaço cujos limites nem sempre são
fáceis de definir, e para o largo, pela linha de
rebentação das ondas.
Segundo a mesma autora,”costa”
seria:
A faixa da superfície terrestre que se
encontra no contacto entre as terras emersas e o mar ou o oceano. Alguns
autores restringem essa faixa apenas ao espaço atingido pelas
águas entre os níveis extremos da maré, outros estendem-na 3 milhas para o interior
Parece óbvio que a precisão da
primeira parte da definição (ao espaço atingido pelas
águas entre os níveis extremos da maré) contrasta
fortemente com o carácter um tanto artificial da segunda (3 milhas para
o interior). Esta definição vem, mais
uma vez, provar o carácter um tanto variável destes conceitos. No mesmo sentido vai a
definição de zona costeira (coastal zone) que poderá ser
definida, de acordo com Carter, (1988), como o
espaço em que os ambientes terrestres influenciam os ambientes marinhos
(ou lacustres) e vice versa. A zona costeira tem uma largura variável e
pode variar com o tempo. A respectiva delimitação não
é possível, uma vez que os limites
são marcados por gradientes ambientais ou transições. Em
cada local, a zona costeira pode ser caracterizada por critérios
físicos, biológicos ou culturais.
Estes não precisam de ser coincidentes e, na
verdade, raramente o são.
De todas estas definições parece
sobressair a dificuldade de estabelecer limites e o carácter gradativo
que as transições geralmente apresentam.
Por outro lado, parece
poder concluir-se que litoral é um conceito mais amplo que costa ou zona
costeira, estendendo-se para o interior por um espaço cujos limites nem sempre são fáceis
de definir. Quando, na linguagem corrente se
proferem frases do género 76% da
população portuguesa está fixada no litoral (Joanaz de Melo, 1993[1]),
é óbvio que o conceito de litoral
é usado em contraposição com o de interior e segundo
critérios essencialmente económicos que têm pouco a ver com
a proximidade da linha de costa ou com qualquer influência marinha ainda
que remota.
Figura 4:
Penetração dos nevoeiros de advecção no litoral da
região do Porto
Embora este conceito de litoral possa ter a
sua utilidade quando aplicado a realidades essencialmente económicas,
preferimos utilizar uma delimitação que
se baseie em fundamentos de ordem física. Assim, propomos que o termo litoral, no âmbito desta disciplina, se refira
à plataforma litoral. Esta poderá ser
definida como:
- Uma faixa aplanada, situada a altitudes
variadas, na proximidade da linha de costa e limitada, para o interior, por um
rebordo, rigidamente alinhado e contrastante com a referida área
aplanada. A plataforma litoral suporta, frequentemente, numerosos afloramentos
de depósitos genericamente classificados como plio-plistocénicos
(M. A. Araújo, 1997) e é limitada, para o interior, por um relevo
muitas vezes nitidamente alinhado (relevo marginal, M. A. Araújo, 1991).
O nosso conceito de plataforma litoral engloba
as áreas onde se encontram as marcas do estacionamento do nível
do mar durante o Quaternário, ou depósitos relacionáveis
com a proximidade do nível de base durante o Neogénico. Nesse
sentido, torna-se, por um lado, mais abrangente do que o conceito de M. E. S.
A. Moreira (1984), que define plataforma litoral como antigas plataformas de
abrasão que actualmente se encontram a cotas diferentes do nível
do mar, submersas ou emersas, correspondendo respectivamente a fases de
transgressão e de regressão marinhas. Todavia, os sectores
submersos serão apenas objecto de referências pontuais a
propósito de correntes (nomeadamente o upwelling) e das
variações do nível do mar durante o final do
Pleistocénico e no Holocénico.
A existência de plataforma litoral
é um traço comum a praticamente todo o país (C. Teixeira,
1979[2]).
O conceito de plataforma litoral comporta
características topográficas (área essencialmente
aplanada), geológicas (existência de
coberturas sedimentares neogénicas) e mesmo climáticas.
A concentração das isolinhas nos
mapas de isotérmicas de Julho, com um
traçado paralelo à linha de costa, na
faixa litoral portuguesa, mostra um aumento
rápido das temperaturas, nos meses de
verão, à medida que se caminha para o
interior.
Esse facto tem a ver, não só com a maior humidade do ar junto à linha de
costa, mas também com certas características específicas do clima litoral.
Embora possa ter um comando sobre a plataforma
litoral de pouco mais de 100m, pensamos que o
relevo marginal funciona como uma barreira bastante eficaz à
penetração das influências oceânicas para o interior,
nomeadamente no que diz respeito aos nevoeiros de
advecção e à nortada que refrescam consideravelmente a
estreita faixa onde actuam.
Embora a escala do mapa seja insuficiente para
dar conta destes aspectos com pormenor suficiente, o
extracto que apresentamos parece demonstrar a influência que o relevo
marginal tem na distribuição dos nevoeiros de
advecção. Estes, por sua vez, têm um importante papel no abaixamento das temperaturas
máximas estivais.
A coincidência de diversos
fenómenos físicos nesta mesma área comprova a respectiva
especificidade e confere ao conceito de plataforma litoral uma operacionalidade
que permite que possa, com vantagens, substituir o conceito de litoral da linguagem corrente, dando-lhe uma maior precisão.
A zona costeira pode ser caracterizada pela
interferência entre diferentes tipos de fenómenos que se
relacionam ora com a hidrosfera (correntes, ondas, marés, variações do nível do mar), ora com o litosfera (tectónica, estrutura geológica, aportes
sedimentares) quer com a atmosfera (clima, agitação marítima). A variedade de
fenómenos em acção converte essa faixa numa interface
extremamente complexa e dinâmica.
Muitas vezes, algumas
dessas características devem ser estudadas num âmbito um pouco
mais extenso para melhor poderem ser entendidas e contextualizadas. Daí
o interesse em alargar a nossa análise à plataforma litoral, cuja compreensão será o objectivo principal da
disciplina.
Uma breve análise da figura
extraída de Komar (1998) permitirá ilustrar a forma como jogam os
diferentes elementos dentro dessa interface, conferindo
uma imensa variedade às paisagens litorais.
Seguidamente serão apresentadas
fotografias com exemplos de paisagens litorais em diferentes tipos de costas
dentro do País, da Península
Ibérica, noutras regiões europeias
e em contextos climáticos frios e tropicais
para ilustrar a variedade que se pode encontrar nos litorais e também o
tipo de abordagem e a atitude científica a desenvolver. Estas imagens
farão apelo quer à nossa experiência (imagens de diversos
países da Europa e também de Moçambique) quer a uma
pesquisa feita em Cd-Roms didácticos e na Internet. A referência
à origem dessas imagens destina-se a estimular idêntica capacidade
de pesquisa dos alunos.
ARAÚJO, M.
A., (1991) - Evolução
geomorfológica da plataforma litoral da região do Porto - Edição da autora, Porto, 534 p., c/ anexos (87 p.) e 3 mapas fora do
texto.
CARTER, R.W.G. -
(1989) - Coastal Environments - An Introduction to the Physical, Ecological
and Cultural Systems of Coastlines, Academic Press
Limited. London, 5ª Impressão, 617 p.
DAVEAU, S. e colaboradores (1985) – Mapas climáticos em
Portugal. Nevoeiro e nebulosidade. Contrastes térmicos. Memórias
do Centro de Estudos Geográficos, nº 7, Lisboa, 84 p., 2 mapas fora do texto
FERREIRA, D. B., (2001) - Turismo e Alteração Climática:
Cenário Para Portugal no Séc XXI, livro de Homenagem ao
Professor Doutor Gaspar Soares de Carvalho, Ed. M. E. Albergaria Moreira, A. Casal Moura, H. M. Granja, F. Noronha, Braga, p. 309-321.
MOREIRA, M. E. S.
A., 1984) - Glossário de termos usados em
Geomorfologia litoral, entro de Estudos
Geográficos, Linha de acção de
Geografia das Regiões Tropicais, relat.
nº 15, Lisboa, 167
p.
SANTOS, F. D, FORBES, K, MOITA,
R. (editores) (2002) – Climate change in
Portugal. Scenarios, impacts and adaptation mesures (Siam project), Gradiva, F. C. Gulbenkian, FCT, Lisboa, 454
p.
TEIXEIRA, C., (1979)
- Plio-Plistocénico de Portugal, Com. Serv. Geol. Portugal, T. 65, Lisboa,
p. 35-46
Web
site
http://www.despodata.pt/geota/Htmls/Activs/cstwatch.htm
Figura
5: Classificação dos litorais essencialmente baseada na
situação estrutural
[1] http://www.despodata.pt/geota/Htmls/Activs/cstwatch.htm
[2] Será interessante lembrar, a este respeito, a frase de C. Teixeira:
“A esse propósito há que aceitar o critério altitudimétrico, plenamente válido no nosso país, onde os diversos níveis se encontram escalonados desde o Minho ao Algarve, não são conhecidos acidentes tectónicos recentes” (C. Teixeira, 1979).