A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DAS FORMAÇÕES QUATERNÁRIAS PARA O ENQUADRAMENTO CRONO-ESTRATIGRÁFICO E CONTEXTUALIZAÇÃO DAS INDÚSTRIAS LÍTICAS PALEOLÍTICAS A ELAS ASSOCIADAS: O CASO DO VALE DO LIS.
João Pedro Cunha-Ribeiro
Faculdade de Letras de Lisboa
Alameda da Universidade
LISBOA
Na Península Ibérica o estudo das indústrias líticas do Paleolítico Inferior tem sido tradicionalmente relacionado com a presença de formações quaternárias de origem marinha e fluvial, já que a presença de vestígios arqueológicos similares noutros contextos sedimentares, independentemente da sua particular importância, correspondia por norma à excepção que confirmava a regra.
Em meados do século que agora finda tais estudos privilegiaram as formações de origem marinha, centrando-se boa parte dos esforços desenvolvidos no litoral português. Pretendia-se já então estabelecer a conexão entre os materiais líticos talhados e os depósitos de praias levantadas, para o que se recorria a uma triagem de tais vestígios arqueológicos com base no chamado "método das séries", classificando-se ao mesmo tempo os depósitos marinhos em função do seu escalonamento altimétrico, de acordo com o modelo "glacio-eustático" então em voga. Estes estudos estenderam-se concomitantemente para a zona vestibular dos principais rios portugueses, com particular destaque para o Baixo Tejo, onde a problemática da investigação subjacente se revelava praticamente idêntica.
A partir dos anos setenta assistiu-se ao desenvolvimento de novas investigações nos troços mesetenhos dos principais rios ibéricos, no intuito de também estabelecer a relação entre as indústrias paleolíticas aí representadas e os terraços fluviais donde frequentemente provinham. Mas se no caso dos depósitos referidos se evitavam generalizações abusivas, entrando-se em linha de conta com as especificidades da sua génese em cada uma das diferentes bacias hidrográficas e os distintos condicionalismos estruturais que elas evidenciavam, no que se refere ao estudo dos materiais líticos talhados tentou-se determinar a sua proveniência estratigráfica e controlar, na medida do possível, o real significado da sua diferenciada alteração física. Daí ter-se tentado distribui-los por um número mínimo de grupos definidos em função do seu distinto estado físico, fazendo ainda depender a sua hipotética diferenciação da existência de significativas características tipológicas e técnicas que entre eles se viessem a observar.
Por outro lado, apesar de parte significativa dos achados se encontrarem em posição claramente secundária, procurou-se delinear em termos arqueológicos o devir das indústrias líticas envolvidas, identificando mesmo o seu desenvolvimento unilinear de acordo com a definição de diferentes estádios evolutivos que acompanhavam de perto esquemas oriundos de outras áreas geográficas. Na ausência de dados bioestratigráficos significativos e de datações absolutas, a sua cronologia alicerçava-se essencialmente na disposição escalonada dos terraços fluviais, permitindo a análise do respectivo contexto geoarqueológico a indispensável ponderação da valia dos testemunhos arqueológicos envolvidos. Pontualmente, foi ainda possível vislumbrar na presença de algumas, poucas, concentrações de materiais líticos indícios de uma relativa preservação da homogeneidade dos vestígios aí originalmente abandonados.
No estudo do Paleolítico inferior do vale do rio Lis procurou-se aplicar numa área geograficamente bem localizada e delimitada parte dos princípios inovadores mencionados. Paralelamente procedeu-se à análise das respectivas indústrias líticas de acordo com pressupostos metodológicos igualmente actualizados.
O estudo das formações quaternárias aí existentes revelou-se nesse sentido particularmente importante. Para os terraços fluviais, desenvolvidos de forma particularmente expressiva na margem direita do rio Lis, no troço que se espraia entre o diapiro de Leiria, a montante, e o dipairo de Monte Real, a jusante, estabeleceu-se a cronologia relativa dos vários depósitos a partir do seu escalonamento topográfico, determinando-se ao mesmo tempo as suas características sedimentares e pedológicas. Foi assim possível relacionar tais depósitos com retalhos de características similares que se espraiam para montante, ao longo do vale do Lis e do vale do Lena.
O carácter azóico dos depósitos envolvidos, a que se juntava também a ausência de datações absolutas, cedo nos conduziu a adoptar a cronologia relativa dos terraços fluviais para o escalonamento temporal dos vestígios aí exumados. De igual forma, a avaliação do contexto geoarqueológico de boa parte dos achados propiciou a avaliação das suas condições pós-deposicionais e, consequentemente, o significado da sua dispersão ou concentração.
A associação entre os materiais líticos talhados recolhidos em locais sobrançeiros aos grandes vales da região ou provenientes de zonas aplanadas adjacentes, permitiu por seu turno reconhecer a importãncia arqueológica das numerosas coluviões da região. A textura fina de muitos destes depósitos veio aliás a revelar-se também decisiva para a preservação de algumas significativas concentrações de vestígios arqueológicos.