QUADRO ESTRATIGRÁFICO E CRONOLÓGICO DO
QUATERNÁRIO INFERIOR PORTUGUÊS E A QUESTÃO DAS PRIMEIRAS
INDÚSTRIAS LÍTICAS
Luís Raposo (1) e João Luís Cardoso (2)
1 — Museu Nacional de Arqueologia e Universidade Lusíada (Lisboa).
2 — Universidade Aberta (Lisboa) e Academia Portuguesa da História.
Desde os trabalhos de H. Breuil e G. Zbyszewski na década de 1940, tendo por finalidade o reconhecimento e caracterização das formações quaternárias do litoral estremenho e da parte vestibular do vale do Tejo (BREUIL & ZBYSZEWSKI, 1942, 1945) que se considera a existência de indústrias líticas arcaicas no território português, descritas como "lusitanianas" (fáces particular do Acheulense dominado por seixos afeiçoados, com quase ausência de artefactos bifaciais) e ascendendo até ao Siciliano (c. 900 000 a 1 MA). Durante os anos 70 e os inícios da década seguinte, a retoma das investigações confirmou, e mesmo alargou, as observações precedentes. Falou-se, nessa ocasião, da presença de um verdadeiro horizonte cultural de seixos afeiçoados (pebble-culture), culturalmente pré-acheulense e cronologicamente muito antigo, talvez calabriano (c. 1,5 MA).
Estas ideias foram postas em causa, e mesmo rejeitadas, por trabalhos de síntese realizados na segunda metade dos anos 80 e durante a década de 90, neste caso em relação com a revisão global dos mais antigos testemunhos da presença humana no continente europeu. Segundo esta perspectiva, nem os sítios, nem as colecções portuguesas, constituiriam prova válida da presença humana antes do início do Plistocénico Médio, a qual, do ponto de vista cultural, corresponderia ao Acheulense.
Ambas as teses mencionadas têm actualmente defensores. Os autores deste artigo são disso prova, tendo ambos defendido opiniões diversas a tal propósito. Com efeito, o primeiro de nós (L. R.) negou a validade das descobertas portuguesas supostamente antigas e exprimiu a sua adesão à ideia de uma "cronologia curta" para a mais antiga presença humana na Europa, limitada inferiormente ao Plistocénico Médio (RAPOSO, 1985; RAPOSO e CARREIRA, 1986; RAPOSO e SANTONJA, 1995). O segundo dos autores (J. L. C.), ao contrário, admitiu como suficientemente provada a ocorrência em Portugal de vestígios de uma presença muito recuada, compatível com uma "cronologia longa" da ocupação do continente europeu, em pleno Plistocénico Inferior (CARDOSO, 1996; CARDOSO, ZBYSZEWSKI e ANDRÉ, 1992).
Nesta comunicação, os autores apresentam uma sistematização dos respectivos argumentos, tanto no respeitante aos critérios de datação dos sítios (baseados exclusivamente em considerações de ordem geológica e geomorfológica, visto não existirem até ao presente elementos cronométricos ou biostratigráficos), como no que concerne à validade intrínseca das indústrias líticas em causa. Mesmo que, com esta iniciativa, as posições de base se mantenham inalteradas, os autores aceitam que nem uma nem outra se podem considerar como definitivamente provadas. Isto quer dizer que reconhecem a existência de observações pertinentes em ambos os campos, as quais deverão conduzir à procura de uma base empírica de dados mais completa, susceptível de esclarecer as dúvidas ainda existentes.
Os autores consideram ainda que esta questão deve ser perspectivada num quadro geográfico mais largo que o actual território português. A este propósito, sublinham que a confirmação da ocorrência de horizontes de ocupação humana do Plistocénico Inferior no sul e centro da Península Ibérica: respectivamente a depressão de Guadix-Baza — sítio de Fuentenouve 3 e Atapuerca — Gran Dolina, nível TD 4 constitui uma justificação acrescida para o desenvolvimento dos trabalhos de campo em Portugal, tendo em vista a obtenção de elementos de datação mais consistentes e a selecção de sítios que justifiquem escavações arqueológicas, susceptíveis de fornecerem indústrias líticas estratigraficamente controladas e estatisticamente representativas.
BIBLIOGRAFIA
BREUIL, H. e ZBYSZEWSKI, G. (1942, 1945) — "Contribution à l´éude des industries paléolithiques du Portugal et de leurs rapports avec la Géologie du Quaternaire". Comunicações dos Serviços Geológicos de Portugal. Lisboa. 23, 369 p e26, 662 p.
CARDOSO, J. L. (1996) — "As praias calabrianas da Estremadura portuguesa e as primeiras comunidades peninsulares: o estado da questão". Actas dos Segundos Cursos Internacionais de Verão de Cascais (17 a 22 de Julho de 1995). Cascais. 1: 213-254.
CARDOSO, J. L.; ZBYSZEWSKI, G. e ANDRÉ, M. C. (1992) — "O paleolítico do Complexo Basáltico de Lisboa". Oeiras. Estudos Arqueológicos de Oeiras. 3, 645 p.
RAPOSO, L. (1985) — "Le Paléolithique Inférieur Archaïque au Portugal: bilan des connaissances". Bulletin de la Société Préhistorique Française. Paris. 82 (6): 173-182.
RAPOSO, L. e CARREIRA, J. R. (1986) — "Acerca da existência de complexos industriais pré-acheulenses no território português". O Arqueólogo Português. Lisboa. Série II, 4: 7-72.
RAPOSO, L. e SANTONJA, M. (1995) — "The earliest occupation of Europe: the Iberian Peninsula". In The earliest occupation of Europe (W. Roebroeks e T. van Kolfschoten, edts.). Leiden: 7-25.