II Jornadas do Quaternário da APEQ; Porto, FLUP, 12-13 Outubro de 2000
 
 

O Quaternário, a morfologia cársica e o património ambiental
 
 

Lúcio Cunha

Centro de Estudos Geográficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

Pç. Porta Férrea - 3040 COIMBRA. E-mail: luciogeo@ci.uc.pt





Resumo:

Nos principais maciços calcários portugueses, o processo cársico que conduziu à elaboração de formas e paisagens sui generis, hoje consideradas de elevado valor patrimonial, é um processo longo e complexo em que o Quaternário apenas representa uma porção muito reduzida do tempo total envolvido.

Pensando apenas nos principais maciços calcários da Orla Mesocenozóica ocidental portuguesa, se exceptuarmos os tufos calcários (e particularmente o maior afloramento, o dos Tufos de Condeixa) que se terão formado já francamente no Quaternário, sendo portanto muito recentes as formas cársicas (lapiás, dolinas, pequenas lapas e abrigos sob rocha) que neles se desenvolvem, nas restantes rochas calcárias o processo cársico ter-se-á iniciado ainda no Jurássico, sendo marcado por fases de diferente intensidade ao sabor das vicissitudes tectónicas e, sobretudo, dos sucessivos ambientes bioclimáticos registados na região. Tanto em grande parte do Maciço Calcário Estremenho, como no conjunto do Maciço de Sicó, ao Quaternário parece ter ficado reservado essencialmente o papel de exumação de paleoformas, algumas pré-cretácicas outra porventura terciárias, ao mesmo tempo que se processava um retoque cársico nas superfícies calcárias entretanto descobertas.

Apesar disso, as formas mais espectaculares, aquelas que detêm um inegável valor patrimonial e que frequentemente correspondem à imagem mais conhecida destes maciços têm a marca indelével dos processos fluviocársicos e cársicos desenvolvidos já no Quaternário.

Na sequência do soerguimento dos maciços e na dependência de coberturas gresosas progressivamente remobilizadas desde os tempos cretácicos, que no início do Quaternário teriam ainda senão um carácter contínuo, pelo menos uma extensão e espessura bem maiores que os poucos restos que hoje se detectam, ter-se-ão criado condições para desenvolvimento das redes fluviais responsáveis por espectaculares canhões, como no caso de Sicó, os canhões dos Poios, do Vale das Buracas e do Vale da Grota. Outros pequenos canhões, porventura mais dignos do nome, dada a quase absoluta verticalidade das vertentes, como é o caso do canhão do Rio dos Mouros que terá sido uma das razões de ser da instalação da cidade romana de Conímbriga, apesar de, porventura, mais recentes têm nas mesmas razões as causas da sua génese.

Parte significativa do interesse paisagístico destes canhões fluviocársicos advém do modelado das suas vertentes e designadamente das "buracas", formas do carso superficial que parecem ligar-se a processos de gelifracção e de dissolução sob a acção de climas frios. Curtos sectores quase verticais (as "penas"), abrigos sob rocha (as "buracas") e escombreiras de diferentes origens são, sem sombra de dúvidas, marcas quaternárias nas vertentes dos canhões fluviocársicos e noutras vertentes escarpadas que em muito contribuem para a valorização da paisagem.

O mesmo acontece com dois outros tipos de formas, autênticos ex-libris do modelado cársico: os lapiás, responsáveis pelo "deserto de pedras" com que se identifica o carso clássico, e as grutas (lapas e algares) que valem, por si só, pelas belezas que encerram e pelos desafios que proporcionam, e também, sobretudo, pelo que significam no processo e circulação e armazenamento da água. Neste caso foi também já no Quaternário que se desenvolveram os processos responsáveis, pela escultura integral de muitas das formas lapiares ou pelos retoques nelas verificados, assim como foi este o tempo que permitiu as últimas estruturações da rede de galerias que balizam o funcionamento hidrológico do carso actual.

Com a presente comunicação pretende-se mostrar a importância dos processos verificados durante o Quaternário na construção da paisagem cársica com particular incidência nas formas que pelas sua especificidade genética, espectacularidade e singularidade mais representam em termos de património ambiental.

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